"Bixa Travesty"

Linn da Quebrada: 'Nós existimos, somos atuantes dentro do cenário político e social'

Em entrevista ao Polêmica a artista que se consolidou como voz questionadora dos padrões sociais fala sobre o documentário “Bixa Travesty”, representatividade e mais.

“Ela tem cara de mulher. Ela tem corpo de mulher. Ela tem jeito. Tem bunda. Tem peito. E o pau de mulher”, canta Linn da Quebrada, 29, na música Mulher, que abre Pajubá, seu primeiro álbum de estúdio, lançado em 2017. Ideia semelhante está em sua fala no início de Bixa Travesty, documentário vencedor do Teddy no Festival de Berlim em 2018, um dos principais prêmios do cinema LGBT. Nele, ela explora o próprio corpo e a identidade. “Eu quebrei a costela de Adão. Prazer, eu sou a nova Eva. Filha das travas, obra das trevas.”

Em 2019, em um momento em que o governo federal realizou ofensivas a produções culturais ligadas à temática de diversidade sexual, Linn foi uma das artistas do universo LGBT que conseguiu projeção. Fez shows internacionais, estreou como atriz na série Segunda Chamada, da Rede Globo, no papel de uma estudante travesti, ganhou visibilidade com Bixa Travesty e lançou seu novo single, Oração, sobre espiritualidade e religiosidade.

No mesmo ano, a escritora Luh Maza, que é transexual, foi contratada como roteirista da série Sessão de Terapia e a atriz Glamour Garcia teve seu primeiro papel em uma novela no horário nobre na maior emissora do País ― o que levou ao primeiro beijo entre uma pessoa trans e uma pessoa cis na televisão.

“Nós existimos, somos seres atuantes dentro do nosso cenário político e social, contribuímos de forma efetiva e relevante com nossas produções. E só me pergunto por que demorou tanto tempo para que isso acontecesse”, diz Linn

A artista, que é nascida na periferia de São Paulo ― e ainda permanece moradora da quebrada ― foi testemunha de Jeová até os 17 anos e acredita que a imagem de pessoas como ela, que fogem à regra e pertencem ao universo LGBT, “está vinculada à violência, morte e prostituição, quando há uma pluralidade gigantesca de vidas e sutilezas ligadas a nós”.

Prestes a completar quase dez anos de estrada, Linn quer mais. ”Acredito que eu ainda tenho muito a dizer, cantar e contar”, diz. No segundo semestre de 2020, ela pretende lançar um novo álbum, o segundo de sua carreira. “Vai se chamar Trava Línguas. Isso se eu não mudar de ideia até lá [risos]. Mas brincadeiras à parte, quero materializar minhas ideias, quero fazer algo importante, necessário e urgente pra mim. Quero me dar esse presente.”

Nesta semana em que o Dia da Visibilidade Trans é comemorado, Linn estará ao lado da banda punk feminista Pussy Riot, da Rússia, em show realizado nesta quinta-feira (30), no CCSP (Centro Cultural São Paulo), com entrada gratuita. O evento faz parte do festival Verão Sem Censura, realizado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, cuja programação está sendo entendida como um contraponto às políticas culturais do governo Bolsonaro.

Em entrevista ao HuffPost, a artista que reflete sobre estruturas sociais, o conceito de feminino e representatividade falou sobre o documentário Bixa Travesty, a sua relação de liberdade e experimentação do próprio corpo, além de representatividade e novos projetos.

Assista ao trailer do documentário premiado

Leia a entrevista completa:

HuffPost Brasil: A partir de sua trajetória pessoal e como artista, Bixa Travesty coloca em perspectiva a discussão sobre “naturalização” de corpos entendidos como normativos e também subverte a lógica de que órgão sexual determina gênero. Jogar luz sobre essa discussão era sua intenção desde o início? E, na sua visão, por que essa é uma discussão que causa certa resistência às pessoas, de modo geral?

Linn da Quebrada: Minha intenção era desvendar e produzir novos mistérios sobre minha própria identidade. Era compreender quem eu estava sendo naquele momento, qual minha posição nesse jogo, nesse tabuleiro de sexo social e jogar a partir dele. Entendendo aí quais possibilidades poderiam surgir, compreendendo também minha estética não sendo estática e que ela tinha interferências sobre mim e o mundo ao meu redor. E justamente por isso causa tanta resistência, por me fazer e me posicionar enquanto corpo político, reivindicando o direito de decisão sobre meu próprio corpo. Direito de dignidade. Direito da vida. E isso obviamente abala as estruturas sexo-social-econômicas do sistema. E portanto assusta aqueles que detêm poder a partir disso.

No filme você mostra bastante o seu corpo e conta histórias sobre ele ― incluindo a experiência que teve com o câncer no passado e a dúvida recente sobre fazer o tratamento de hormonização ou não. Qual a sua relação com seu corpo hoje? A exposição no documentário te deixou confortável?

Eu acho muito curioso o quanto o corpo assusta. Perguntas relativas a eu me sentir confortável ou não com a exposição do meu corpo são muito frequentes. Acredito que essa exposição assuste a quem veja. A quem não está acostumado a encarar o corpo enquanto corpo, com honestidade. O que me deixa desconfortável é justamente a forma que somos midiatizadas e expostas cotidianamente pela grande mídia. Nossa imagem está vinculada à violência, morte e prostituição, quando há uma pluralidade gigantesca de vidas e sutilezas ligadas a nós. Eu acredito que exponho meu corpo com cuidado, generosidade e afeto. Exponho meu corpo com uma fragilidade cruel e isso pode até assustar, mas se fez necessário a mim.

E justamente por isso causa tanta resistência, por me fazer e me posicionar enquanto corpo político, reivindicando o direito de decisão sobre meu próprio corpoLinn da Quebrada, em entrevista ao HuffPost Brasil

Logo no início do documentário, há cenas em que sua mãe, em uma conversa na cozinha ao lado de amigos, te chama acidentalmente pelo pronome masculino – e você corrige – e outras em que vocês tomam banho juntas (em uma cena que chega a emocionar pela delicadeza). Ela também é uma peça fundamental no seu processo de autoidentificação? 

Minha mãe não é uma peça fundamental no meu processo de autoidentificação, mas é fundamental no processo que revela como o mundo me lê e que diagnóstico faz sobre mim. Portanto ela é fundamental no meu processo de construção e negociação de leitura da minha identidade. E justamente por isso ela é tão necessária. Pois ela simboliza meu diálogo com o mundo. Com outra geração. Ela revela como é importante criar novas estratégias e principalmente um vocabulário comum que possibilite a nossa convivência. Sem que eu a subestime e fazendo com que ela faça o mesmo comigo. Com ela todas as teorias queer caem por terra se eu não traduzo de uma forma que ela possa compreender meu processo. Buscando contato, diálogo e intimidade real. Faz parte de um projeto de humanização.

Ao mesmo tempo que há uma ofensiva a produções de temática LGBT por parte do governo federal, há iniciativas como a da TV Globo que contratou a escritora Luh Maza como roteirista da série “Sessão de Terapia”, que colocou a Glamour Garcia em uma novela das nove e você no papel de Natasha, na série “Segunda Chamada”, que terminou em 2019. Como você vê este cenário? O que significa ter mais pessoas trans em lugares considerados hegemônicos?

Eu acho necessário e fundamental. Pois nós existimos, somos seres atuantes dentro do nosso cenário político e social, contribuímos de forma efetiva e relevante com nossas produções. E só me pergunto por que demorou tanto tempo para que isso acontecesse e para que nossas vidas e contribuições se tornassem relevantes para o ‘Cistema’. Esse sistema ‘cis-heteronormativo’ excludente. Eu espero que tenha cada vez mais empresas comprometidas com a vida, que sejam cada vez mais corajosas em suas iniciativas e abarquem cada vez mais pessoas trans, negras, pessoas que fujam de um padrão convencional e tradicional. Pois quem tem a ganhar são eles também. Pois nós temos muito a agregar com novos olhares e proposições.

Recentemente você também lançou “Oração”, uma música que fala de religiosidade e espiritualidade de forma um pouco diferente de como esses temas foram abordados em “Pajubá”, lançado em 2017. O que mudou?

Eu mudei, o mundo mudou. Está tudo em trânsito. Não sei aí, mas aqui está tudo um caos. E eu estou adorando, pois percebo que o cenário é outro e mesmo o que não mudou não permanece ileso ou intacto. E isso transforma minhas sensações, minhas relações e afetos, me faz querer cantar outras coisas de outra forma. Me mantém em movimento e viva, e querendo viver.

Eu acredito que exponho meu corpo com cuidado, generosidade e afeto. Exponho meu corpo com uma fragilidade cruel e isso pode até assustar, mas se fez necessário a mimLinn da Quebrada, em entrevista ao HuffPost Brasil

Houve um episódio complicado na gravação do clipe. Você pode contar o que aconteceu? Isso afetou o resultado final?

Tentaram nos impedir de gravar na locação, apesar de termos todo respaldo legal pra isso. Um suposto dono apareceu, acompanhado de policiais nos coagindo a abandonar a locação. Abuso de poder, foi isso que aconteceu. Fomos impedidas de usar o espaço por quatro horas e apenas quando conseguimos trazer um advogado é que pudemos voltar a gravar e por uma hora apenas. E claro que isso teve efeito sobre nós. Eu não pude por em prática minhas ideias na forma como tinha planejado, com o tempo e a tranquilidade que tinha me programado. Fiquei com raiva e constrangida por deixar que as outras meninas passassem por mais uma situação de violência. Mas o que fica evidente é o quanto fomos parceiras e o quanto nossa rede é forte. Que apesar de tudo conseguimos criar algo maravilhoso e muito mais forte que a fragilidade patriarcal.

Quando você lançará um novo álbum? Há algo em vista?

Pretendo trazer um novo álbum ao mundo no segundo semestre de 2020. Já tenho experimentado e construído coisas novas há algum tempo. O álbum vai se chamar Trava Línguas. Isso se eu não mudar de ideia até lá, rs. Mas, brincadeiras à parte, quero materializar minhas ideias, quero fazer algo importante, necessário e urgente pra mim. Quero me dar esse presente. Acredito que eu ainda tenho muito a dizer, cantar e contar.

Fonte: Huffpost Brasil
Créditos: Huffpost Brasil