Relatos da Tropa

'TUDO ERA MOTIVO PARA APANHAR': Soldados do Batalhão da Guarda Presidencial relatam agressões físicas praticadas por companheiros

Quando se alistaram para o serviço militar obrigatório, os soldados Lucas*, 25 anos, Jorge* e Rafael*, ambos de 20, sonhavam em servir no Exército e seguir carreira nas Forças Armadas.

Quando se alistaram para o serviço militar obrigatório, os soldados Lucas*, 25 anos, Jorge* e Rafael*, ambos de 20, sonhavam em servir no Exército e seguir carreira nas Forças Armadas. O que eles não imaginavam era que, da porta para dentro do quartel, a rotina seria de humilhações e castigos físicos. A violência era praticada nas dependências do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP) e ocorria com a anuência de superiores, como forma de “manter a ordem”, conforme denunciam.

No BGP existe uma regra não escrita de que os militares lotados na unidade devem apanhar para “engrossar o couro”. As sessões de espancamento praticadas por soldados contra colegas de mesma patente ocorriam pelos motivos mais fúteis e serviam como castigo diante de qualquer mínimo desvio disciplinar. Lucas, Jorge e Rafael estão entre os alvos das agressões que, segundo eles, eram frequentes.

Lucas conseguiu filmar os abusos em fevereiro passado. Agora, o trio, que deixou a Força após anos de serviços prestados, aguarda laudo do Instituto Médico Legal (IML) para levar o caso ao Ministério Público Federal (MPF).

“Tudo era motivo para apanhar”, resume Rafael sobre os dias de farda. Quem faltasse ao serviço ou chegasse atrasado era recebido pelos colegas aos tapas. O mínimo desleixo com a aparência ou limpeza do uniforme também era razão para uma “cautela”, nome dado pelos soldados aos castigos. Coturno não engraxado, farda suja ou amarrotada, cabelos ou barba malfeitos resultavam em surras de cinto e até pedaços de madeira. Quando faltavam motivos, qualquer pretexto servia aos agressores para começar uma sessão de espancamento. Receber o primeiro salário, voltar das férias ou fazer aniversário eram razões para membros de baixa patente da guarda presidencial se juntarem em torno de uma vítima.

“Essa violência gerava um bom andamento no quartel.” Veja depoimento de Lucas, um dos soldados vítima das agressões: Depois entrou um novo capitão e ele fazia vista grossa para tudo que acontecia lá dentro. Nós levamos o caso aos superiores, mas eles riam. Diziam que era para manter a ordem e que aquilo daria um bom andamento à companhia”.

O batalhão onde os soldados eram lotados é responsável pela segurança das residências oficiais da Presidência e da Vice-Presidência da República bem como do Palácio do Planalto. Entre as vítimas, Lucas foi quem incentivou os colegas a denunciarem o caso. Ele é o que tem mais tempo de serviço: ficou cinco anos no BGP, localizado no Setor Militar Urbano (SMU). Os outros dois ficaram dois anos na unidade. “Quando eu entrei, entre 10 e 15 deles me bateram e disseram que estavam me ‘batizando’ para pertencer àquele lugar”, lembra Lucas.

Segundo o soldado, a situação piorou quando houve a troca do capitão que chefiava a unidade, em dezembro de 2018. O antigo chefe era rigoroso e punia os “brigões” sempre que um caso de agressão chegava a seu conhecimento. Um dos instrumentos usados nas agressões tornou-se lendário dentro do BGP. Um pedaço de madeira pouco maior do que uma folha A4 era temido no batalhão. A tábua era usada pelos agressores para bater nos soldados. Depois de apanhar, as vítimas tinham o nome anotado na placa.

Ao fim dos oitos anos que um militar temporário pode servir, a “relíquia” era disputada por aqueles que se despediam do Exército. A tábua continha os nomes de todos que apanharam nos últimos oito anos. No novo ciclo, outro pedaço de madeira era providenciado para continuar com o violento modo de garantir a disciplina adotado no Batalhão da Guarda Presidencial. Quaisquer instrumentos ou objetos ao alcance da mão serviam aos algozes para castigar os colegas. O cinto da farda, a bainha do facão e até a ripa de madeira que sustenta os colchões eram usados. Os golpes geralmente eram dados na região da cintura, nádegas e pernas.

Pela hierarquia estabelecida pelos próprios soldados, os de menos idade devem obedecer aos mais velhos. Caçula do quartel, Rafael era também um dos que mais apanhava. “Eu era acordado de madrugada para lavar pratos e limpar banheiros. Não podia dizer não.” A agressão mais recente praticada contra Rafael ocorreu em 20 de fevereiro de 2019. Após apanhar e relatar a situação ao capitão da companhia, o agora ex-militar diz que foi dispensado e mandado de volta para casa.

Com muitas dores naquele dia e dificuldade para caminhar, o rapaz conta que pediu ajuda a um cabo para ir até a enfermaria. “Ele me viu lá e me chamou até a sala dele, ou seja, não me deixou ser atendido. E disse que eu estava desobedecendo. Ele pegou o laudo com o relatório do meu atendimento, rasgou, e me mandou embora para casa”, narra Rafael.

Naquela data, o jovem foi à guarnição dar baixa após ser dispensado do Exército. As agressões foram a “surra de despedida”. Caçula de uma família de sete pessoas, Rafael diz que só voltou no dia seguinte para pegar documentos e objetos pessoais que tinham ficado no BGP porque dependia do salário. “Minha vontade era de não ir depois daquela humilhação. Só fui por causa da minha família.” Após o episódio, amigos inconformados com a situação foram procurar os superiores para denunciar o caso. Cabos, sargentos e o capitão não deram importância, segundo relatos.

Apenas após chegar ao adjunto de comando foi que tomaram alguma providência. Os denunciantes tentaram falar diretamente com o tenente-coronel Pedro Aires Pereira Júnior, responsável pelo BGP, para comunicar o ocorrido, mas não foram recebidos. “Isso é quebra de hierarquia, mas os nossos superiores diretos não tomaram providências, por isso tentamos falar diretamente com o tenente-coronel”, conta Lucas, que é amigo de Rafael. Rafael registrou boletim de ocorrência na 3ª DP (Cruzeiro), a mais próxima ao batalhão, por lesão corporal. Ele aguarda a emissão do laudo do IML para tomar providências judiciais contra o Exército e levar a denúncia ao Ministério Público.

A situação ganhou atenção dos superiores após os soldados ameaçarem levar o caso à Justiça e à imprensa. “São as duas únicas coisas que eles têm medo. Quando a gente falou que levaria para a mídia, reuniram todo mundo que agredia e expulsou do Exército”, disse Lucas. Ainda segundo o ex-militar, 12 pessoas foram desligadas da Força.

Jorge também era uma das vítimas frequentes das sessões de espancamento. Ele tinha dois anos de serviço no BGP quando deixou o batalhão, também em fevereiro deste ano. Segundo ele, após o adjunto de comando tomar conhecimento da situação e exigir explicações dos agressores, as vítimas que relataram o caso passaram a receber ameaças. “Você fica esperto comigo. Se eu te pegar, te quebro de cacete”, ouvia dos brigões.

Para Jorge, a lógica dos castigos é semelhante à de trotes em universidades: “Fazer com o outro o que fizeram comigo”. “Tem gente com 18 anos lá dentro dizendo que isso não acontecia. Só que cabo e sargento já foram soldados. Eles também já apanharam e já bateram, por isso o apoio dos mais antigos. Por isso ninguém faz nada”, lamenta. O Metrópoles pediu posicionamento oficial do Ministério da Defesa e do Exército. A pasta não quis se manifestar.

Por meio de nota, o Exército disse que tomou conhecimento do fato no dia 20 de fevereiro e que, “de imediato, o comandante da unidade determinou a instauração de processo administrativo”. Ainda segundo a corporação, houve a determinação para que “a suposta vítima fosse submetida ao exame de higidez física, a fim de elucidar os fatos”.

Por fim, o Exército informou que o Comando Militar do Planalto (CMP) está acompanhando as apurações e aguarda solução para tomar as medidas pertinentes. No entanto, a Força não informou quantos militares estão lotados no BGP. Questionados pela reportagem, a Presidência e a Vice-Presidência da República não quiseram se manifestar.

https://youtu.be/z0j7MSmhGWU

Fonte: Metrópoles
Créditos: FERNANDO CAIXETA