Discriminação

'Não sou cachorro', diz faxineiro tirado de elevador da Biblioteca Nacional

Era um dia comum de faxina na Biblioteca Nacional. Edmilson Costa de Oliveira, 33, havia limpado o banheiro e avançava para cumprir outra tarefa. Pegou o elevador, juntamente com outras três funcionárias, mas foi impedido de subir para o outro piso. Vestia o uniforme azul de faxineiro de uma empresa terceirizada.

Ele relata que, no dia 10 de janeiro, foi proibido de usar um dos elevadores do prédio federal pela coordenadora-geral de Planejamento e Administração da Biblioteca Nacional, Tânia Pacheco. Em depoimento ao UOL, Edmilson diz ter sido vítima de preconceito racial. A Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância apura se houve crime de racismo.

Morador do Engenho Novo, bairro do subúrbio do Rio, Edmilson é casado, tem uma filha de dez anos e mora na casa da sogra. Perdeu o pai aos 12 anos e a mãe se casou quando tinha 16, idade em que se viu sozinho e teve de largar os estudos para trabalhar. Estudou até a 8ª série e já fez de tudo um pouco —foi ajudante de construção, office boy, vendeu água na praia e tem uma barraquinha onde vende churrasco.

Quando ocorreu o incidente, Oliveira cumpria aviso prévio. Ele conta que a empresa Riolimp determinou que completasse o restante do período em uma faculdade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

A Biblioteca Nacional negou a existência de qualquer ato discriminatório na instituição (veja a nota completa ao final da reportagem). Tânia Pacheco não atendeu o UOL para entrevista.

Isso aconteceu numa sexta-feira, dia 10 de janeiro, às 14h15. Eu estava na metade do expediente. Tinha acabado de sair [da limpeza] do banheiro para fazer minha última tarefa de serviço.

Foi quando eu entrei no elevador. Estava no térreo, ia para o segundo andar para pegar o elevador até o armazém dos livros. Entrei e escutei uma voz:

‘Ei, ei, psiu, psiu, sai, sai, sai.’ Eu achei que não era comigo. ‘Está falando comigo? Para eu sair do elevador?’ ‘Você mesmo. Sai, sai, sai. Bora! Seu elevador é o outro. Você não pode usar esse elevador aí não.’

Eu questionei: ‘Por que você está me tirando do elevador? Eu sou diferente de algumas das pessoas aqui? Eu sou diferente de você que eu não possa usufruir desse elevador? Pelo que sei, aqui só não pode subir com materiais [de limpeza]’.

E ela [Tânia Pacheco]: ‘Não, você tem de usar o outro elevador, esse elevador não é o seu’. ‘Mas como assim? Eu estou aqui há oito meses. Nunca aconteceu isso comigo.’

Ela mandando eu sair aos gritos, ofensas, com gestos abusivos. Fiquei sem chão. Foi um constrangimento muito, muito sério. Cheguei até a passar mal. Isso não é admissível, ainda mais para uma chefe de trabalho.

Eu sou negro, sou de família negra. Minha esposa é negra. Isso aí é inadmissível.

[…]

Na minha cabeça, [Tânia Pacheco falou para usar o outro elevador] porque ele tem proteção nas paredes, para não sujar. Eu fui discriminado, levei como racismo pela minha cor e pelo uniforme que eu estava usando.

Elevador de serviço

Sempre usei os dois elevadores. Nunca ninguém tinha questionado nada. [Usar o] elevador de serviço só se a gente estiver com material de limpeza. Se estiver sem nada, a gente pode usufruir dos dois elevadores.

Quando entrei no elevador, estava com uniforme. O uniforme é todo azul. Todo mundo sabe que nós somos da limpeza.

Ela não deu nenhuma justificativa [para determinar a retirada do elevador]. Eu questionei e ela ficou mais irritada. ‘Sai, sai.’ Ameaçando que ia chamar os vigilantes para mim.

‘A senhora pode chamar quem for porque ninguém nunca me passou que eu não poderia usar esse elevador. Estou aqui há 8 meses e não vai ser a senhora agora que vai me mandar sair desse jeito aqui. Eu não sou cachorro para a senhora estar fazendo psiu para mim.’

Tinham umas três funcionárias [no elevador] —uma era servidora federal e as outras duas, terceirizadas. Na hora, nenhuma delas reagiu até porque ficaram com medo da forma agressiva que ela agiu comigo.

[…]

Ela chamou os vigilantes. Eles me conhecem há algum tempo, sabem meu jeito de trabalho, que eu sou tranquilo, que nunca trouxe problema para ninguém aí. Eles me abraçaram, me chamaram num canto. ‘[Eles falaram] Você está certo. Isso não pode acontecer, ela está errada. Ela está estressada, mas vem para cá pra não se complicar, para não perder a tua razão.’

31.jan.2020 - Edmilson Costa de Oliveira levou faixa de protesto à Biblioteca Nacional - Taís Vilela/UOL

Eu fui lá para fora, fiquei analisando. ‘O que que eu faço?’ Aí muitas pessoas chegaram em mim, como uma dessas que estava no elevador. Aí começaram a fazer umas cartas, denunciaram.

[Naquele dia] Ainda continuei trabalhando, porque estava no meu horário de trabalho apesar de tudo. Quando saí, fui procurar a delegacia. Lá me informaram que já era tarde [para registrar o BO]. Na segunda-feira, me mandaram para essa delegacia sobre racismo, foi lá onde eu consegui fazer o BO.

Eu quero justiça, não quero indenização, para que ela não possa fazer isso com mais ninguém. Ela merece pagar pelo que ela fez porque, se fosse eu que tivesse feito isso com ela, eu sou negro, sou filho de pobre, infelizmente eu teria de pagar preso. Ela fez isso comigo, ela pode continuar fazendo com outras pessoas e isso tem de acabar. Minha família é negra.

Nunca pensei que fosse passar por uma situação dessas. Ainda mais dentro de uma Biblioteca Nacional onde tem vários livros de estudos sobre a escravidão. E ela como servidora federal deveria dar exemplo de cidadania para gente que não tem estudo.

Ela [a servidora] deveria abraçar a gente de uma forma de carinho pelo que a gente faz por eles. Poxa, eu sou faxineiro, eu deixo o banheiro limpo para todos. Quando eles chegam, sentam naquela cadeira para trabalhar, passam a mão na mesa, a mesa está limpa, sem nenhuma poeira.

[…]

Ela deveria ter mais consciência de nunca falar essas coisas para as pessoas, humilhar, discriminar. Ela deveria nos apoiar. Ela trabalha na Biblioteca Nacional, é conhecedora dos livros, estudou. Não podia fazer isso nem com um cachorro.

O que diz a Biblioteca Nacional

A Biblioteca Nacional informou, por meio de nota, que “jamais permitiu atos de racismo”.

“A Fundação Biblioteca Nacional jamais permitiu atos de racismo dentro da instituição e na sua história recente jamais houve registro de qualquer ato discriminatório ou de racismo, nem por parte de seus servidores, nem de seus funcionários terceirizados.”

A instituição disse que “o incidente foi exaustivamente investigado, com a participação de todas as instâncias, depoimentos de testemunhas e imagens de câmeras internas e nenhum ato racista foi comprovado”.

“A questão policial está sendo investigada e temos a certeza de que será arquivada. Todos os depoimentos de funcionários já foram tomados e foram unanimemente favoráveis à servidora. Tânia Pacheco é funcionária pública há 40 anos e jamais teve uma mancha em seu currículo”, conclui a nota.

UOL pediu à assessoria de imprensa uma entrevista com a servidora, mas ela foi negada. A reportagem procurou Tânia Pacheco na biblioteca, mas ela não foi localizada.

Em entrevista à Folha de S.Paulo em janeiro, Tânia afirmou que não houve qualquer ato discriminatório, mas uma ação administrativa. Ela negou haver distinção entre elevador social e de serviço.

“A gente tem todo o interesse que seja esclarecido. Isso é um prédio tombado. Na realidade, eu recebo ordens. Sou apenas a responsável pela administração. Recebo ordens da presidência, da diretoria executiva, no zelo ao patrimônio da casa”, disse.

Questionada, a biblioteca negou a existência de regras para o uso de seus dois elevadores. Disse também que a Procuradoria da instituição considera o incidente um “não caso”.

Apesar de o órgão negar qualquer ato discriminatório, por duas vezes, a assessoria de imprensa sugeriu à reportagem, em conversa por WhatsApp, apurar a “folha policial” de Edmilson.

Procurada, a Riolimp disse que não iria se manifestar sobre o caso.

Fonte: UOL
Créditos: UOL