casos

Mulheres lésbicas relatam constrangimento em consultas ginecológicas: 'Isso é pecado'

“Deixa a sua namorada engravidar de um cara qualquer, é só uma transadinha, é mais barato e tem menos complicações.”

A declaração perturbadora foi dada por uma ginecologista às suas pacientes, um casal de mulheres lésbicas. Elas foram conhecer as técnicas disponíveis e os custos para a realização de um sonho –o da maternidade– e deram de cara com o preconceito, o descaso e a falta de ética profissional. O mais alarmante vem agora: as duas não são as únicas que passaram por esse tipo de constrangimento durante uma consulta.

Em uma pesquisa informal no meu Instagram, pedi a mulheres homossexuais que avaliassem seus ginecologistas. Em 24 horas, recebi 60 respostas, de várias partes do país. Apenas um quarto delas eram positivas. Os outros 45 depoimentos eram tão chocantes quanto o que abre este texto.

“Fui fazer uma consulta de rotina e pedi para fazer alguns exames para saber como as coisas estavam, já que o último tinha revelado ovários policísticos. Queria saber se tinham aumentado ou diminuído. A resposta da médica foi: ‘Você não transa com homem, então, não tem necessidade’. Receitou um anticoncepcional e abriu a porta para eu sair”, relatou Camila.

“Há dois meses, fui à ginecologista e ela fez aquelas perguntas de praxe sobre relações sexuais e anticoncepcionais. Respondi que não tomava porque era lésbica. Expliquei que o motivo da consulta eram uns caroços doloridos nos seios e muita dor no período menstrual. Ela pediu para eu tirar só a parte de baixo da roupa e me examinou, enquanto atendia o celular. O preventivo foi super rápido e doeu muito. Ela não me tocou nos seios para verificar os caroços, disse apenas que um exame que ela ia passar daria pra ver. Quando eu falei que era homossexual, senti a mudança dela. Eu me senti constrangida e nunca mais voltei lá”, declarou Ale, do Rio de Janeiro.

Sexo de verdade

Izabel, de Brasília, passou pelo mesmo problema: “A ginecologista tinha aproximadamente 55 anos e, quando me perguntou sobre o contraceptivo, respondi que não usava, por ser homossexual. Além de fazer uma cara de quem tinha visto fantasma, ela ficou monossilábica. Fez o exame de toque e coleta do colo do útero em cinco minutos e disse que, se o resultado não apresentasse nada de anormal, não precisava voltar. Quando perguntei se não iria prescrever mamografia, ela ficou bem sem graça. Respondi que não precisava, porque eu também não iria voltar. Deus me livre!”.

“Meu médico perguntou se eu já tinha feito sexo de verdade, com homem, porque com mulher ele não ia considerar”, contou Letícia, de 23 anos.

“Quando eu disse para a ginecologista que só tinha relações sexuais com a minha mulher, ela me passou o maior ‘sabão’, sobre como isso era errado. Na hora de me examinar, perguntou se eu pretendia ter filhos. Eu disse que não tinha decidido ainda e ela, de forma muito desagradável, disse que eu não poderia ter, que seria pecado”, expôs Lídia.

“Uma vez fui a um ginecologista novo e tive de contar que era lésbica e nunca havia transado com homens. Ele perguntou quais posições eu fazia com a minha parceira e como sentia prazer, além de chamar a enfermeira enquanto eu estava lá de pernas abertas e dizer: ‘Acredita que ela é lésbica? Uma menina dessa, tão bonita, né?!’. Saí de lá com nojo dele!”, desabafou Nayara, de Fortaleza.

Abuso, negligência e constrangimento devem ser denunciados aos órgãos competentes. Um deles é o CRM (Conselho Regional de Medicina), responsável, dentre outras coisas, pela fiscalização da prática médica. Suas medidas podem variar desde uma advertência à cassação do exercício profissional. Para a queixa, um modelo de formulário é disponibilizado pelo órgão, em seu site.

Casos de assédio sexual ou moral devem ser registrados na delegacia de polícia mais próxima –do local onde o fato ocorreu ou da residência da vítima– e também levados ao conhecimento do CRM, para que uma investigação paralela seja feita.

Além desses dois meios legais, é importante ressaltar o poder das redes sociais em tornar instantaneamente pública uma violência sofrida, o que, por mais doloroso e difícil que seja, também é uma forma de proteger outras mulheres.

Andréa Maria Novaes Machado, médica ginecologista do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, explica a gravidade do problema, em âmbito nacional: “Existe uma escassa produção científica abordando a temática saúde e homossexualidade feminina no Brasil, com pouco conhecimento sobre as demandas desse grupo de mulheres. Além disso, o preconceito e o constrangimento que muitas enfrentam durante o atendimento médico resultam em um grande número de problemas de saúde não diagnosticados e não tratados”.

Uma mulher não heterossexual está tão suscetível a doenças e infecções como candidíase, gonorreia, sífilis, hepatite C, HPV, herpes genital e até HIV quanto uma heterossexual. Além disso, ser homo ou bissexual não impede nem restringe o cuidado que se deve ter em relação ao câncer de colo de útero e o de mama, por exemplo, por isso exames de rotina realizados de forma adequada são vitais.

De acordo com Andréa Novaes, os problemas que as mulheres não heterossexuais enfrentam nos consultórios ginecológicos poderiam ser mitigados com a realização de esforços conjuntos voltados a essa demanda. “As redes de cuidado devem capacitar os profissionais de saúde com respeito à diversidade de mulheres homo e bissexuais. Há testemunhos de despreparo para lidar com as questões específicas vivenciadas por mulheres homossexuais. Isso acontece porque, infelizmente, boa parte dos cursos da área da saúde e especializações no Brasil são deficientes na formação mais ampla da sexualidade humana. No consultório de muitos ginecologistas, mulheres homo e bissexuais são percebidas como heterossexuais e podem ter as demandas negligenciadas ou a orientação sexual questionada.”

Fonte: UOL
Créditos: UOL