Enquanto as mães convencionais se preocupam com a felicidade dos seus filhos ou com as notas vermelhas que eles tiram no colégio, nós, as mães da periferia, duelamos para que os nossos estejam vivos. Aqui é tudo muito difícil. Os únicos serviços que a gente ainda tem como garantia são o posto de saúde e as escolas mais próximas. Lazer já é exigir demais.

O problema do Israel é que ele nunca compreendeu a rejeição da família biológica – e aí ele se arrebenta tentando chamar atenção. Todas as vezes que ele saiu de casa foi em busca dessa mãe que não quis criá-lo. Ela é uma pessoa cheia de problemas.

Quando Israel nasceu, a mãe dele já tinha outros dois filhos e achou uma boa ideia ficarmos com ele, porque “era um problema a menos”. Minha mãe pegou para criar, mas faleceu antes do processo de adoção sair, quando ele estava com 10 anos. Então, eu o registrei. O que eu ia fazer? Ia jogar na rua esse menino que estava comigo desde bebê, e que eu gostava desde quando ele estava na barriga? De irmã, eu me tornei mãe.

Quando fez 11 anos, o Israel começou a dar trabalho. Eu já fui em conselho tutelar, em albergue, em casas de recuperação de dependentes químicos. São esses os espaços que muitas mães da periferia ocupam. Depois vem a Delegacia da Criança e do Adolescente, o fórum criminal, os centros socioeducativos e as penitenciárias. Alguns conseguem evitar isso, mas só quando têm uma extensão de família. Eu não tinha. O pai dele não me ajudava. Era só nós dois.

Uma vez ele disse que ia embora pra não me dar dor de cabeça. Como se isso fosse me deixar tranquila, né? Ele saía, e eu ficava mais preocupada. Ia fazer boletim de ocorrência ou ia na favela buscar e o trazia de volta pra casa. Aos 14 anos, ele foi apreendido a primeira vez, mas antes disso já tinha um passado de pequenos crimes e usava drogas. Eu só soube o que tinha acontecido depois de 20 dias, porque ele conseguiu um telefone e me ligou. “Mãe, vem me visitar que eu estou preso”. Faltou o meu chão naquela hora.

Entre idas e vindas, meu filho ficou dos 14 aos 18 anos dentro do sistema. Mas o centro não ajudou em nada na sua transformação. E eu não estou justificando, mas é como mãe que eu afirmo isso. Se ele tivesse ficado mais comigo do que dentro de um centro, talvez hoje ele não estivesse no sistema prisional.

Em 2015 e 2016, Israel passou por muitas rebeliões e extremas violações de direitos humanos dentro do sistema socioeducativo. A gente chegava para visitar e os meninos estavam todos surrados. Eles apanhavam tanto que a rebelião era uma forma de protesto. Vivi meu pior momento quando o Israel tinha 16 anos. Eu chegava lá pra visitar e ele estava drogado ou dopado.

Foi nesse contexto que surgiu o grupo de mães. Nossa união também é uma maneira da gente se apoiar, porque não existe um acolhimento para as famílias. A nossa luta é pela ressocialização dos nossos filhos, porque o sistema não tem como prioridade recuperá-los. Na verdade, o centro socioeducativo funciona como escola do crime e os presídios são as faculdades. Esses não são espaços de transformação.

Quando o Israel saiu, aos 18 anos, nós fomos procurar emprego para ele. Saímos cada um com uma pasta embaixo do braço. A gente fazia o centro inteiro entregando currículo e ele não conseguiu trabalho. Foi então que ele começou a se envolver novamente com o uso abusivo de drogas e foi preso em um assalto a ônibus.

O meu medo agora é que ele se “batize” em alguma facção. Desde que entrou no sistema prisional temos lutado, eu e ele, pra evitar isso. Eu digo que se ele sair do presídio faccionado, eu não o recebo em casa. E ele não tem mais para onde ir. Mas quando eu faço isso, eu sou um pouco maldosa porque, lá dentro, estar em uma facção é questão de sobrevivência. Ele já viu dois presos morrerem. Me dói quando ele pergunta ‘mãe, e se eu tiver que entrar?’. Mas eu fico calada.

Esse é um erro do estado. Quando foi preso, o Israel se declarou massa carcerária, ou seja não tem envolvimento com facção. Mas não tinha para onde mandar ele, então colocaram em um presídio que recebe só presos condenados. Puta que pariu! Um menino de 20 anos dormindo ao lado desses caras, já com conhecimento extenso sobre o crime. Imagine como o Israel vai sair dali? Se ele entrar para a facção eu vou ter perdido de fato essa batalha. Porque a minha luta é para que ele se mantenha vivo e que consiga mudar. Mas se ele se faccionar, vira um soldado do crime que precisa cumprir ordens.

Meu filho passou os últimos seis anos de vida preso. O estado me devolveu um adolescente viciado, embrutecido e com a mente muito tendenciosa para o que é ruim. O tempo que ele usou mais drogas foi quando estava dentro do sistema socioeducativo. Agora está na penitenciária, e eu não sei quem vou receber em casa. A maneira como ele fala comigo, às vezes, é grosseira. Eu digo pra ele que eu não sou outro preso, que é pra ele falar comigo direito. Aí ele pede desculpas, mas é o sistema que desumaniza. Eles saem adoecidos.

Uma vez eu fui visitá-lo e vi suas mãos machucadas. Perguntei o que tinha sido e ele não me falou para não me preocupar. Lá dentro é insalubre. É onde eles choram, e a gente não sabe. Eu nunca vou esquecer de uma vez que ele disse que a repressão psicológica é pior do que a física, porque o hematoma passa, mas a dor psicológica fica. Ele diz que prefere mil vezes tomar uma surra.

É uma realidade cruel. O que o Israel está recebendo é só castigo. Então, o que ele pode reproduzir? São seis anos vivendo de violência. É por isso que eu o compreendo, embora isso não justifique nenhuma atitude errada.

A sociedade pode achar que meu filho tem que morrer, mas eu luto para que ele sobreviva. Eu não sou mãe de preso. Sou professora, pedagoga, ativista e mãe do Israel.

* Depoimento dado a Nayara Felizardo.