Centenário

A improvável história de Jackson do Pandeiro, o menino negro e pobre que gravaria cerca de 140 discos

José Gomes Filho foi de tudo um pouco. Zé, Jack, José Jackson e Zé Jack, por conta do fascínio pelos filmes de faroeste, cujo ídolo era o ator Jack Perrin. Mas o que esse homem miúdo de bigode estreito e mãos malabaristas melhor soube ser foi Jackson do Pandeiro. O Rei do Ritmo, que chegaria aos 100 anos no próximo sábado, dia 31, começou a carreira pelas beiradas, acompanhando a mãe Flora Mourão em rodas de coco, morando em casa de taipa, nos arredores de um engenho do brejo paraibano.

— Jackson tinha tudo contra si. Um cara que foi alfabetizado aos 35 anos, negro, pobre, em tese não teria condições de chegar aonde chegou — analisa Fernando Moura, coautor da biografia “Jackson do Pandeiro: O Rei do Ritmo”.

Jackson do Pandeiro, nome artístico de José Gomes Filho, nasceu em Alagoa Grande, na Paraíba, e completaria 100 anos no próximo 31 de agosto Foto: Mario Luiz Thompson / Divulgação
Jackson retratado em fevereiro de 1955. Filho de uma cantora de coco, o cantor, compositor e instrumentista ficou também conhecido como rei do ritmo Foto: Agência O Globo
Jackson do Pandeiro em cena do filme “Minha sogra é da polícia”, de 1958. Na foto, com Costinha e Violeta Ferraz Foto: Divulgação
Jackson do Pandeiro e Almira Castilho, com quem se casou em 1956. Viveu com ela até 1967 Foto: Kojima / Divulgação
Em fevereiro de 1962, Jackson do Pandeiro e Almira Castilho Foto: Arquivo / Agência O Globo
PUBLICIDADE

Em outubro de 1965, Jackson do Pandeiro e sua mulher, Almira, no “Zicartola”: novos proprietários do famoso bar. Na foto, comemoram o lançamento do disco de João do Vale (à esquerda), “O poeta do povo” Foto: Arquivo / Agência O Globo
A baiana Neuza Flores dos Anjos, segunda esposa e viúva de Jackson do Pandeiro, em seu apartamento em João Pessoa Foto: Eduardo

Em agosto de 1981, Jackson do Pandeiro em show no Maracanãzinho para comemorar os cinco anos do “Projeto Pinxinguinha” Foto: Anibal Philot / Agência O Globo
Ao chegar no Rio em 1955, Jackson foi contratado pela Rádio Nacional, onde alcançou grande sucesso com canções como “O Canto da Ema”, “Chiclete com Banana” e “Um a Um”. Artista morreu em 1982, aos 63 anos de idade Foto:
Monumento a Jackson do Pandeiro em Alagoa Grande Foto: Eduardo Vessoni / Agência O Globo

Estátuas em homenagem a Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, em Campina Grande Foto: Eduardo Vessoni / Agência O Globo
Chapéu de Jackson do Pandeiro, em exposição no Memorial Jackson do Pandeiro, em Alagoa Grande Foto: Eduardo Vessoni / Agência O Globo

Violão de Jackson do Pandeiro, assinado por Juscelino Kubitschek, em exposição no Memorial Jackson do Pandeiro, em Alagoa Grande Foto: Eduardo Vessoni / Agência O Globo
Instrumentos do cantor em exposição no Memorial Jackson do Pandeiro, em Alagoa Grande Foto: Eduardo Vessoni / Agência O Globo
Bloco de anotações de Jackson do Pandeiro, também em exposição no memorial Foto: Eduardo Vessoni / Agência O Globo
Carteira de identidade de José Gomes Filho, o Jackson do Pandeiro, em exposição no memorial em Alagoa Grande Foto: Eduardo Vessoni / Agência O Globo

Debruçar-se sobre sua discografia é ver um desfile de gêneros musicais, em seus quase 140 discos. Em 1953, estreia com um compacto com duas faixas que seriam hits por longa temporada: “Forró em Limoeiro” e “Sebastiana”.

No mês de seu centenário, O Globo vai à Paraíba atrás da história e do legado do Rei do Ritmo, que gravou cerca de 140 discos
Embora seu nome esteja associado ao forró, o ritmo que o músico mais gravou foi samba. Foram 117 músicas deste gênero, seguidas por rojão (72), baião (42) e marcha (40), segundo pesquisa levantada por Sandrinho Dupan, assistente de curadoria musical do Museu de Arte Popular Paraibana (MAPP), em Campina Grande. Em 1964, por exemplo, lança o disco “Coisas nossas” com uma sequência de afro-sambas, dois anos antes do trabalho sincrético com o qual Vinicius de Moraes e Baden Powell, acompanhados do Quarteto em Cy, dariam novos tons à MPB.

Desde junho, o MAPP, mais conhecido como Museu dos 3 Pandeiros, abriga “Jackson é 100, Jackson é Pop”, exposição que conta a história do músico com fotografias, objetos como o pandeiro original e letras inéditas. Ali perto, a Universidade Estadual da Paraíba guarda raridades como a letra “Marco emocional”, registrada com a caligrafia do próprio músico.

Em Alagoa Grande, onde Jackson nasceu, a relação com o filho ilustre não é simples. Ele parece ter sido apagado da lembrança daquela gente que carrega uma certa mágoa pelo distanciamento do compositor. “Acho que faz mais de 900 anos que eu saí de lá. Passei uma fome da bexiga, por isso não quero voltar lá”, confessou no programa “Ensaio” em 1973.

Rei do Ritmo e do forró?

Lá, o Memorial Jackson do Pandeiro, localizado em uma casa de 1898, guarda fotos, capas de discos, os inconfundíveis chapéus e camisas estampadas, jornais de Almira Castilho (a ex-esposa, morta em 2011) e um violão de Jackson, assinado por Juscelino Kubitschek.

— A gente está plantando Jackson na terra em que ele nasceu, a fim de que ele floresça — explica Gabriele Nunes, monitora do espaço inaugurado há uma década.

— Aproveitemos o centenário e ouçamos mais Jackson do Pandeiro. É preciso ouvir o lado B, o C e o Z de Jackson para que a gente tenha noção da importância dele — diz o biógrafo Fernando Moura.

‘Invasão estrangeira’
Não foi uma carreira estável. No início dos anos 1970, ele se queixava em entrevista ao GLOBO: “Não tem lugar pra trabalhar, tudo isso por causa da invasão da música estrangeira”. Em 1976, o disco “É sucesso” traz faixas como ““Iê, iê, iê no Cariri”.

— Jackson tocava no pandeiro dele qualquer música dos Beatles, fazendo na base um coco, e provava que, assim como o reggae, o coco tem essa capacidade de ter alma própria — descreve o pernambucano Lenine, que compôs “Jack soul brasileiro” em homenagem (e sampleando) o mestre.

Jackson chegou a ir da fama ao esquecimento, mas nunca saiu do repertório de artistas consagrados, de Gilberto Gil a Zeca Pagodinho. Paradoxalmente, os mesmos cabeludos dos anos 1970 que pareciam ameaçar a música regional com suas novas batidas o trariam de volta à cena musical. A mistura promovida pela Tropicália ressuscitava o paraibano em gravações como a versão jazzística que Gal Costa gravou para “Sebastiana”, em 1969, e a versão “bosseada” de “Chiclete com banana”, no antológico “Expresso 2222” que Gil lançou em 1972.

O tempero extra viria naquele ano, quando Alceu Valença e Geraldo Azevedo bateram à porta de Jackson, para convidá-lo para defender com eles “Papagaio do futuro”, no Festival da Canção.

Cultura Racional
Naquela década, um reformado Jackson do Pandeiro compõe samba e forró inspirado na Cultura Racional. É dessa experiência curta, de 1973 a 1978, que o músico grava faixas como “Mundo de paz e amor” e “Alegria minha gente”, cuja capa tem Jackson com um colar com a imagem que ilustra a série de livros “Universo em desencanto” que fundamentam a seita, fundada pelo médium Manoel Jacintho Coelho e que também inspiraria Tim Maia.

— Não são beatas nem religiosas. São músicas que falam de questões universais com que todo mundo se identifica, de paz, amor e consciência — analisa o músico Arthur Pessoa, líder da Cabruêra, banda que, em 2019, toca com Os Fulano o lado B de Jackson, em um repertório só com canções da temporada Racional e músicas inspiradas nos terreiros de candomblé que o compositor frequentou no Recife, como o batuque “Pai Orixá”.

Mas Jackson gostava mesmo era de mulher. Desde o início, sua obra foi marcada por algumas canções impensáveis para a época, como mudança de sexo, em pleno início da década de 1960 (o forró “A mulher que virou homem” é considerado uma das primeiras músicas brasileiras a tratar do assunto).

Cantou não só a mulher que “topa parada” (“Forró em Limoeiro”, 1953) mas também a enalteceu em faixas como “História de Lampião” (1977), em que defende que o Rei do Cangaço deveria pagar pelo que fez no sertão, mas Maria Bonita, não.

Exceto por um primeiro casamento forçado, a mulher sempre foi uma espécie de arrimo em sua vida pessoal e profissional. Almira Castilho, elegante e bem formada, foi a mulher que lhe ensinou as letras; Neuza Flores, a última esposa, é a ex-metalúrgica que largou tudo para acompanhar o ídolo que viraria marido. A primeira esteve ao lado dele, em tempos de sucesso e dinheiro rápido — apareceu em alguns dos nove filmes que ele fez, por exemplo); a segunda foi a fisioterapeuta particular após um acidente em 1968, e viu o Rei do Ritmo desaparecer dos palcos, aos poucos.

Fonte: O Globo
Créditos: –