Sem comemoração

Índios sofrem com cortes na Funai e sem decreto de terras há um ano

Comunidade potiguara reúne 20 mil indígenas

A demarcação de terras indígenas no Brasil está praticamente parada e, segundo movimentos sociais e pesquisadores, enfrenta um momento de grande dificuldade e instabilidade.

A Funai (Fundação Nacional do Índio) teve corte de cargos e fechamento de unidades. Além disso, desde 29 de abril de 2016, nenhum decreto homologando demarcação de terras foi assinado pelo presidente Michel Temer.

O processo de demarcação de terras é composto por etapas. A primeira delas é a criação de um grupo de trabalho que analisa o território. Com a indicação positiva, são necessárias duas portarias: a que delimita a terra, a cargo da Funai; e a que declara a terra, do Ministério da Justiça. Depois disso, o processo segue para homologação do presidente.

“Essa homologação é a parte mais decisiva, que é quando não tem mais volta e envia para o patrimônio da União regularizar. O processo de demarcação está parado no Brasil”, explica Jorge Vieira, doutor em antropologia indígena pela Université Grenoble Alpes (da França) e pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais).

Existem hoje 72 áreas declaradas à espera da assinatura. Depois de homologadas, as terras seguem para registro em cartório em nome da União. Antes de deixar o cargo, em seu segundo mandato, Dilma Rousseff homologou dez terras indígenas.

Segundo Vieira, os processos de demarcação sempre correram em ritmo lento por culpa de questões políticas que impedem o andamento dos processos. “O presidente negocia sempre voto de parlamentares que têm interesse, que usam aquela terra. Aí o processo para pelo interesse político”, afirma.

O decreto que estabelece o processo para demarcação de terras indígenas foi publicado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1996. “É um processo extremamente burocrático. E tem um problema jurídico: a Constituição diz que devem ser demarcados os territórios tradicionalmente ocupados. Se são povos originários, não tem sentido ouvir fazendeiros, invasores, municípios. O indígena é proprietário anterior à criação do Estado, a terra é dele”, explica.

Hoje no país existem 453 terras indígenas já regularizadas. Outras 127 estão em fases anteriores de processo. Já outras 114 estão em fase de estudo para dar início à demarcação. Seis terras estão interditadas –ou seja, com restrições de uso e ingresso de terceiros, para a proteção de povos indígenas isolados. Ao todo, 817 mil índios vivem no país, segundo dados do Censo 2010. Em 1500, quando os portugueses invadiram o país, eram 3 milhões.

Cortes abalam órgão

Em 2016, a Funai perdeu recursos. No ano passado, orçamento executado foi de R$ 531 milhões, segundo dados do Portal da Transparência. O valor foi praticamente o mesmo de 2015 (R$ 534 milhões), mas, quando descontada a inflação do período, chega-se a uma queda de quase 11%.

Para 2017, o decreto 8.859, de setembro do ano passado, estipula um corte 38% dos recursos para custeio/investimento da Funai.

Em outubro, a Funai informou, por meio de um memorando interno ao Ministério da Justiça –ao qual está subordinada–, que estava em situação crítica com o corte de verbas e ameaçava fechar de 70 a 130 unidades das 260 existentes.

A Funai explicou ao UOL, por nota, que um decreto determinou a extinção de “87 cargos do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores (DAS) e a criação de funções de confiança denominadas Funções Comissionadas do Poder Executivo”. “Com isso, 51 Coordenações Técnicas Locais (CTLs) foram extintas”, completa.

Questionada sobre como os cortes impactam o órgão, a Funai se limitou a dizer que o presidente Antônio Costa “solicitou ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão o estudo da criação de 12 DAS nível 1 para fortalecer as Coordenações Regionais que perderam essas 51 unidades (CTLs) ligadas a elas”.

Fragilização dos povos

Segundo Kleber Buzatto, secretário-executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ligado à Igreja Católica, os cortes enfraquecem ainda mais a Funai e tornam mais frágeis as comunidades. “Ao retirar força de trabalho, o governo cria um impedimento, cria dificuldades ainda maiores para que os direitos desses povos sejam respondidos”, diz.

Ele conta que não tem ainda uma dimensão exata dos efeitos dos cortes. “O desdobramento prático ainda está em curso. A gente sabe que tem coordenações técnicas que foram e deverão ser fechadas, haja vista não haver pessoal para que elas continuem funcionando”, informa.

Questionada pela reportagem, a Funai apenas informou números, sem dizer quais unidades foram ou serão fechadas.

Segundo Buzatto, as coordenações técnicas são importantes por serem representações de índios em regiões mais distantes. “Sem elas, índios vão ficar sem representação.”

Além disso, ele cita o esvaziamento de pessoal em setores estratégicos. “Um desses setores é a diretoria de licenciamento ambiental, que analisa impactos em empreendimentos como hidrelétricas, rodovias e obras que atinjam terras indígenas. O número de 13 pessoas, que já era reduzido, caiu para oito, o que acaba criando uma situação de extrema vulnerabilidade”, ressalta.

Uma das unidades locais que foi fechada nessa reestruturação da Funai foi a do Rio Grande do Norte. Por conta do fechamento, índios ocuparam o prédio onde funcionava o órgão.

“Essa coordenação proporcionou mais autonomia na realização dos eventos do movimento indígena no Estado, como assembleias, conferências, seminários, oficinas etc.”, conta Tayse Potiguara, índia que vive em uma comunidade na zona rural de João Câmara, citando que há uma promessa de reativação da unidade, mas ainda sem data. “Estamos apreensivos. Sem ela ficamos sem voz e onde buscar direitos aqui”, afirma.

Segundo o índio Weibe Tapeba, que é do Ceará e integra o Conselho Nacional de Política Indigenista, o corte de cargos veio em um momento totalmente inapropriado. “Foi feito um levantamento e apontou-se que precisaríamos de um concurso para 6.000 servidores na Funai. São muitas áreas descobertas”, diz.

Tapeba conta que um problema da Funai é o loteamento de cargos. “Isso tem impactado o perfil de escolha, que tem sido meramente politico e não se considera o direito a consulta prévia. São pessoas alinhadas com os donos de propriedade”, critica. Além da demora nos processos, Tapeba comenta a judicialização dos casos, que atrasa ainda mais a demarcação.

Todos os entrevistados ouvidos também dizem temer uma ação legislativa: a votação da PEC 215, de 2000, que tiraria da Presidência e passaria ao Congresso Nacional a homologação da demarcação das terras. “Isso geraria uma instabilidade política terrível, uma dependência de um Congresso conservador e repleto de ruralistas”, finaliza Tapeba.

O Palácio do Planalto foi procurado, mas não havia mandado resposta até a publicação desta reportagem. O posicionamento será publicado neste texto assim que recebido.

Fonte: UOL