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'Se você é pobre, a culpa é sua?' - Por Estevam Dedalus

"Os privilegiados, porém, não parecem inclinados a abrir mão de seus privilégios"

Millôr Fernandes dizia que “a diferença entre existir e viver é de dez salários mínimos”. Esse aforismo parece encerrar uma triste verdade. A pobreza debilita o corpo, produz desequilíbrio emocional e social, reduz as possibilidades individuais em relação ao desenvolvimento intelectual e a fruição, transformando impiedosamente a vida numa luta agônica pela sobrevivência.

Com raríssimas exceções, as sociedades humanas não se organizaram com base em divisões de classe e privilégios materiais ou simbólicos. A crença na superioridade intelectual frente ao trabalho manual é comum à história da civilização. Os antigos gregos consideravam o trabalho braçal indigno, de modo a relegá-lo aos escravos. Apenas aos homens livres caberia a vida política, a filosofia, o esporte, a religião e as artes.  Horas de lazer e deleite estético sempre foi para poucos. Platão, um dos maiores intelectos da antiguidade, nasceu numa importante família ateniense e foi abertamente hostil à democracia; enquanto Aristóteles achava a escravidão algo natural.

A ideia de que os pobres são merecedores de descanso e lazer muito raramente seria bem recebida pelos mais ricos. Bertrand Russell, em seu brilhante ensaio O Elogio ao Ócio, conta que na Inglaterra, no início do século XIX, havia uma forte resistência a feriados. Naquela época, as jornadas de trabalho eram sobremaneira desumanas e os direitos dos empregados praticamente inexistentes. Em média, um adulto chegava a passar entre 15 e 16 horas no chão de uma fábrica, em troca de salário miserável. Uma versão moderna da escravidão. As tentativas de mudar esse quadro sofreram resistências. Os defensores do regime, entre outras coisas, argumentavam que trabalhar em excesso impediria que os homens se tornassem beberrões e as crianças delinquentes.

O mais paradoxal, em nosso tempo, é que a técnica científica juntamente com a capacidade industrial se desenvolveu de modo a atingir níveis extraordinários. Vimos diminuir como nunca a necessidade de trabalho físico, o que não necessariamente se traduziu numa diminuição geral de carga horária. Jamais ficamos tão perto do “fim do trabalho”, isto é, de sua emancipação. Temos a capacidade de produzir alimentos, moradia e demais bens essenciais em quantidade suficiente para toda a humanidade. O que falta, então, para construirmos uma sociedade justa?

Os privilegiados, porém, não parecem inclinados a abrir mão de seus privilégios; mesmo que isso possa significar um mundo mais justo. Assim é que, em nossa época, as questões políticas e éticas são mais preponderantes que as condições práticas e objetivas, como o fato de que a sociedade tem no mercado sua instituição central. Em grande medida os conhecimentos científicos e os esforços políticos ao invés de serem orientados para o bem-estar geral visam essencialmente o lucro.

Assistimos hoje, em escala global, a um progressivo e deletério enfraquecimento das políticas de bem-estar social. A população mundial continua a empobrecer, o que não deixa de fora as principais economias do planeta. A concentração de renda é tão brutal que 1% da população do planeta detém 99% de toda riqueza. No Brasil, apenas cinco bilionários possuem juntos uma quantidade de dinheiro superior à metade mais pobre.

No Vale do Silício, Califórnia, sede de gigantes da tecnologia como a Google, se multiplicam os números de pessoas que moram dentro de carros. O preço alto dos aluguéis e a falta de políticas públicas resultaram na explosão do número de sem tetos. Dados de 2017 revelaram 168 mil moradores de rua apenas nos Estados da Califórnia, Washington e Oregon. Boa parte formada por trabalhadores com diferentes tipos de ocupação: encanadores, vendedores, professores universitários e por aí vai. No restante dos EUA, os sem teto ultrapassam meio milhão de pessoas.

A personagem do cinema recente que melhor representa esse cenário de pobreza nos chamados “países ricos” é o carpinteiro Daniel Blake – do cineasta inglês Ken Loach. O caso Blake é muito emblemático. Após ser vítima de um ataque cardíaco, impossibilitado de trabalhar, sem fonte de renda, sem família, vê sua condição de vida despencar. A única saída ao “seu alcance” é apelar para um auxílio estatal, que é emperrado por um perverso sistema burocrático.

Na visão de Loach, tal burocracia e seu conjunto de exigências estúpidas procuraria imputar culpa à vítima. Em entrevista ao El País, o cineasta declararia: “As grandes corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres. O Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Por isso cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista. Montam um sistema burocrático que te pune por ser pobre. A humilhação é um elemento-chave na pobreza. Rouba a sua dignidade e a sua autoestima. E o Estado contribui para a humilhação com toda essa burocracia estúpida”.

Fonte: Estevam Dedalus
Créditos: Estevam Dedalus