'produto do amor abnegado pelo pai'

FAZENDO O HAMLET: Carlos Bolsonaro é o príncipe do Brasil - Por Carlos Andreazza

Entre os mais simbólicos episódios da posse de Jair Bolsonaro esteve a carona que o filho Carlos tomou no Rolls-Royce presidencial. A passagem ensejou muitas leituras. Nenhuma me parece mais equivocada do que a que interpretou ali a projeção do que seria o próximo capítulo no livro do patrimonialismo eleitoral bolsonarista e, pois, a expressão de um projeto de poder pessoal. Carlos Bolsonaro não desfilou em carro aberto com o pai presidente como sinal de futura transferência da capitania, como distinção por meio da qual se poderia identificar um sucessor. Não.
Naquele filme, creio, só havia acerto de contas com o passado, lá onde, em 2000, o porvir do próprio Carlos fora condicionado. Ele não tem pretensões políticas para si. É transparente. Mais: tem consciência de suas limitações; o que lhe dá clareza sobre seu papel. É um militante do pai, acima de tudo, e um aliado do irmão Eduardo — este, sim, ambicioso.

A explicação para a presença de Carlos naquele corso tem origem, avalio, em passagem pouquíssimo investigada; e que se pode resumir assim: determinado pelo pai, concorreu contra a própria mãe, então em busca de se reeleger, a uma cadeira na Câmara Municipal do Rio, e a venceu, tomando-lhe os votos, eleito o mais jovem vereador da história, títere de Jair no desdobramento eleitoral da ruptura do casal Bolsonaro.

Ninguém sai ileso de uma disputa contra a mãe. Ninguém sai ileso de uma disputa — patrocinada pelo próprio pai — contra a mãe. Ninguém sai ileso de uma disputa contra a mãe, patrocinada pelo pai, por votos que eram — que sempre foram — exclusivamente do pai; a árvore frondosa sob a qual não terá sido fácil crescer. Engana-se quem pensa, porém, que um evento como esse perturbe o fruto sem afligir a árvore.

Carlos Bolsonaro, segundo o leio, é produto do amor abnegado pelo pai, sujeito moldado pela provação a que se submeteu por fidelidade incondicional. É o filho eterno; talvez a criança eterna. O soldado eterno — certamente. Uma existência esvaziada de interesses individuais, dirigida pela conveniência do criador e acomodada a serviço deste. Carlos não teria uma missão. Seria uma, tal a forma como parece haver incorporado a condição de filho do mito. O filho que foi sacrificado, mas que é cultivado — e que afinal se compreende — como alguém que se sacrificou. É como o arranjo amoroso se sustentaria, e não sem tensão. Da parte do fruto, com mais e mais entrega — e a propaganda constante do desprendimento. Da parte da árvore, com atenção especial e constantes manifestações de apreço e gratidão — consequência de um sentimento comum aos pais.

Sim. Jair Bolsonaro tem culpa — este, acredito, o evento fundador. Culpa que manifesta em preocupação publicamente exposta e em cuidados exclusivos com o filho; o que explicaria a reverência em carro aberto tanto quanto a referência carinhosa a Carlos feita pela primeira-dama em seu discurso.

Não é com prazer que se trata de assunto como este. Ocorre que filho de presidente é sempre problema; tanto mais quando três deles têm mandatos eletivos, dois dos quais em Brasília, e declarada — explorada — ascendência política sobre o governo do pai. Já escrevi a respeito. Escreverei muito ainda. Escrevo também porque me parece evidente que, no futuro, a mais precisa crônica sobre esses tempos de bolsonarismo no poder estará na análise da interação entre Flávio, Carlos e Eduardo, e da forma como se relacionarão com o presidente genitor.

Hoje, Carlos e Eduardo — este, cujo projeto próprio é uma obviedade — encabeçam um grupo político, facção cuja fortaleza tem fundação na capacidade de mobilização em rede e no modo como cooptaram influenciadores digitais. Montaram um bunker no Ministério das Relações Exteriores; mas não somente. Para além, claro, do apoio ao governo, trabalham para que o deputado federal por São Paulo, o mais votado da história, seja, entre os irmãos, o primeiro, o sucessor político do pai, desbancando aquele naturalmente destinado à primazia, o senador eleito e hoje isolado Flávio.

O recente episódio sobre a movimentação financeira do ex-assessor de Flávio Fabrício Queiroz é simbólico da cisão fraternal que jogou o primogênito ao mar. Sempre tão beligerantes em defesa da família, Carlos e Eduardo mal se manifestaram a respeito, senão para resguardar o pai e responsabilizar preventivamente o irmão caso algo de comprometedor viesse a ser descoberto — no que foram seguidos pelos divulgadores do pensamento bolsonarista nas redes sociais.

Em governos como em famílias, não raro se necessita mais de sangue que de lágrimas.

Fonte: O Globo
Créditos: O Globo