Uma democracia somente para Ricardo Coutinho

Gilvan Freire

Ricardo Coutinho foi líder sindical da área de saúde pública estadual, vinte e poucos anos atrás. Suas opiniões eram muito ouvidas, em razão da firmeza com que enfrentava o patrão – o governo. Manejava a palavra como espada em luta de samurais, mas queria apenas ser ouvido e respeitado em suas razões classistas. E nem precisou quebrar as portas do Palácio para poder entrar nele, embora tenha protestado mais fora do que dentro. No palácio, naquela época, cabia um sindicalista.

Enfim, eram os discursos de Ricardo e suas justas razões que abriam as fechaduras do castelo governamental onde, via de regra, o poder transforma os seres humanos para pior. Era ali onde Ricardo sentava, tomava café e água e dialogava com o empregador, como se fosse seu superior vindo da rua. Dessas ruas, o governador também tinha vindo antes e dali extraíra o seu próprio poder, mas RC acabara de recolher o protesto dos que fizeram um governo do qual podiam discordar por incompatibilidades de opinião e gênio. Tudo parecia democrático e normal.

Posteriormente, Ricardo ingressou na política. Perdeu a primeira eleição para vereador e ganhou as demais para tudo, até para ser o governador que o povo elegeu pensando ser outro, e não o atual. Mas, na política e na esfera sindical, não fez amigos pessoais. Ricardo pensa ser totalmente diferente dos demais tanto quanto os demais pensam ser totalmente diferentes dele. Sob esse aspecto, os conflitos de relação já eram inteiramente previsíveis. Pareciam inevitáveis.

RC detesta os políticos e o padrão de conduta que adotam no exercício da atividade. É por isso que deseja fazer um governo sem a participação deles, porque entende que podem até fazer uma obra boa, contanto que se locupletem. Coisa ensinada pela oração de São Francisco, segundo a qual “é dando que se recebe”.

Ricardo quer praticar uma democracia direta em que o povo não tenha representantes na interlocução. Faz isso através do Orçamento Democrático, um modelo de gestão aparentemente compartilhada em que a população toda pode quase nada, Ricardo pode quase tudo e os políticos, coisa alguma podem. Prefeitos, vereadores, deputados e senadores, embora eleitos para representar o povo, não têm a menor importância ou autoridade nesse colegiado popular. É uma democracia especial onde entre todos os detentores de mandato só Ricardo é autoridade.

No Orçamento Democrático os políticos de mandatos não são convidados a comparecer ou dar opinião, mesmo que sejam os únicos legítimos delegados do povo com autorização e diploma. E a população também não comparece de forma expressiva porque julga já ter seus representantes políticos, a quem deu mandato. Os que comparecem, que não são muitos em relação ao todo da população, são tidos como representantes dos que não comparecem. Mas não têm autorização expressa porque os delegados democraticamente autorizados são outros, de vereador a senador.

Mas porque RC gosta desse modelo anormal de democracia tida como participativa? É o seguinte, o furo é mais embaixo.

No Orçamento Democrático as assembleias populares apontam as obras de interesse local, tipo escolas, creches, calçamento, água, esgoto, etc., precisamente aquelas ações que serão de qualquer forma inseridas na execução do orçamento governamental. A maior parte dentro dos elevados gastos obrigatórios da educação (25%) e saúde (11%) do orçamento. Já os grandes investimentos e obras ficarão a cargo exclusivamente do governador, que não precisa e nem gosta de consultar ninguém.

Para ser ter uma compreensão mais próxima da realidade, basta entender a gestão de Ricardo em João Pessoa. A população sugeriu pequenas intervenções locais, mas quem fez a Estação Ciência, quem contratou o lixo, comprou equipamentos milionários e remédios para a saúde, livros, fardas, merenda e carteiras escolares, foi Ricardo sozinho, afora as grandes obras viárias, veículos, máquinas pesadas, desapropriações caras, insumos diversos, prestação de serviços especializados.

A equação que passo a fazer não é rigorosamente matemática, mas não há como ser muito diferente: Ricardo governou diretamente algo mais de 95% do orçamento municipal sozinho, contra menos de 5% sugerido por essa suposta e falsa democracia popular, que passa a ideia de estar representando 100% da população.

Ricardo ama essa democracia que lhe garante o direito de desconhecer todos os mandatos eletivos, fora o mandato dele, e adora não ter de consultar a ninguém sobre o que fazer ou não fazer em mais de 95% de sua gestão. É democracia de pajés.