Pelo menos a verdade

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Nonato Guedes

A Comissão Nacional da Verdade, criada para investigar violações aos direitos humanos, sobretudo na ditadura militar, começa a gerar embriões nos Estados. A Paraíba criou a sua e já tem um roteiro definido de trabalho, devendo começar pelo levantamento acerca da explosão de uma bomba no cine Apolo XI em Cajazeiras na década de 70, com vítimas fatais. Quando surgiu a proposta de instalação da Comissão da Verdade houve um questionamento legítimo, natural, sobre o alcance que poderia ter, ou seja, o efeito prático que teria para punir agentes da repressão envolvidos em episódios de barbaridades. O questionamento deixou de ser feito porque já se sabe que a Comissão dificilmente arrastará culpados para as grades. Há o problema da prescrição de crimes, consagrado no Direito Internacional e há, também, a circunstância de ter sido aprovada no país uma Lei de Anistia recíproca.

Lembro que no período de discussões sobre o formato da Lei de Anistia a polêmica foi a tônica dominante. Militares e suas corporações advertiram para o perigo de se instituir um paredão unilateral apontado apenas para agentes da repressão, ignorando-se os excessos cometidos pelo outro lado e que supostamente atingiram pessoas inocentes. O debate, em certa medida, era previsível. Afinal, por mais que se tenha bom senso, a fase que culminou na vigência de uma ditadura foi encarada como uma espécie de guerra entre agrupamentos da sociedade, e num estado de guerra a situação torna-se incontrolável, exigindo dos envolvidos rapidez de decisões, por mais drásticas que elas sejam. Concordou-se, em princípio, que não se estimularia o revanchismo, mas que pelo menos a verdade deveria vir à tona, com nomes, sobrenomes e, se possível, fotografias dos que cometeram violências.

Como ignorar, por exemplo, o perfil do torturador da militante Dilma Vana Rousseff, hoje presidente da República? A própria Dilma o reconheceu, a imprensa descobriu que ele vive em Guarujá, no litoral paulista, e o entrevistou. Ele confessou histórias que achou relevante contar para emoldurar o seu retrato em uma triste página da história política brasileira. Expôs-se em declarações desafiadoras, típicas de quem julga deter o beneplácito da impunidade. Se age assim num regime democrático, como não terá agido na longa noite das trevas, para cumprir o sádico ofício de torturar alguém por causa de suas convicções políticas? O que a hoje presidente pode restaurar do tempo de opressão? Um passaporte de que ela foi vítima? Esse passaporte ela já tem, refletido nas cicatrizes que brutalizaram o corpo e a alma. Só que, parodiando o jornalista gaúcho Luiz Claudio Cunha, é preciso contar, é preciso desmascarar quem fez o jogo sujo. Para que haja, pelo menos, uma reparação simbólica das violências inomináveis praticadas, e para que os seus autores sejam identificados perante o julgamento da História.

Não há decreto que tenha força para devolver vidas despedaçadas, restaurar itinerários de existência que foram tragicamente interrompidos no recorte de um enfrentamento político-ideológico. A punição viável está mais para a catarse, para a expiação de pecados cometidos, e este doloroso rito de passagem é necessário para que a História não fique truncada, cheia de lapsos e de distorções da informação. O que se busca, em última análise, é fazer o legado exemplar para conhecimento das novas gerações porque as que se envolveram na guerra já purgaram seus danos, já se auto-flagelaram ou foram flageladas pela memória que não poupa ninguém.

O Brasil dos anos de chumbo foi o país dos órfãos do talvez, do quem sabe, numa referência aos desaparecimentos de presos políticos que já se encontravam sob a custódia do Estado. Oficialmente nada era informado, porque a ordem era espalhar o terror entre famílias para mostrar a força do Estado e desencorajar focos de contestação a governos ilegítimos que praticaram terrorismo com a sanção oficial. Na reconstituição que ainda hoje se faz de episódios vergonhosos, fica cada vez mais claro, como dizia Ulysses Guimarães, que a sociedade, na época, era Rubens Paiva, não o agente que torturava para cumprir uma ordem alimentada pela sanha da repressão. É pelo menos para isto que devem servir as Comissões da Verdade. Só através do conhecimento da verdade é que a sociedade se reconciliará consigo mesma no compromisso de continuar alerta contra quaisquer movimentos políticos que acabam aderindo ao terror. Por isso é que a Comissão Nacional da Verdade constitui o primeiro passo para a pacificação dos espíritos ainda em conjuntura de desassossego.