descaracterizada

Para Silvério Pessoa, cada vez menos pessoas entendem o significado do São João

"Há este risco, o da extinção da festa, suas características já estão sendo esquecidas. O aspecto da religiosidade, por exemplo, a devoção aos santos do período, Santo Antônio, São Pedro e São João, a ligação com a colheita do milho, tudo. A importância do período é muito forte para o nordestino.

“Danei a faca no tronco da bananeira/não gostei da brincadeira, Santo Antonio me enganou/saí correndo lá pra beira da fogueira/Ver meu rosto na bacia, a água se derramou”. É cada vez menor o numero de nordestinos que entendem o significado desses singelos versos de Brincando na Fogueira (Antonio Barros), sucesso do Trio Nordestino em 1967, e um dos clássicos definitivos do repertório junino. As adivinhações e simpatias que, junto com a culinária, a música e a dança, formam o conjunto de tradições da principal festa do Nordeste estão praticamente esquecidas. Logo será o próprio São João, que vem passando por transformações rápidas e radicais:

 “Há este risco, o da extinção da festa, suas características já estão sendo esquecidas. O aspecto da religiosidade, por exemplo, a devoção aos santos do período, Santo Antônio, São Pedro e São João, a ligação com a colheita do milho, tudo. A importância do período é muito forte para o nordestino. Até roupa própria se comprava para a ocasião: a camisa quadriculada”, o comentário é de Silvério Pessoa, ele próprio um dos modernizadores dos gêneros musicais embutidos no coletivo forró, quando acrescentou beats eletrônicos a cocos e rojões.

Silvério questiona, entre outras coisas, que se dediquem trinta dias aos festejos juninos: “São João mesmo é a véspera, e o dia do santo. Depois se festeja o São Pedro. Esta coisa de um mês inteiro acaba levando os municípios pequenos a imitar as cidades grandes que fazem 30 dias de festa, e sem recursos contratarem um monte de artistas. Não vejo motivo para isso. O São João deixou de ser uma festa da família nordestina. Eu sou de interior, de Carpina, e cresci vendo as pessoas brincarem nos arraiais na rua em que moravam, em quadrilhas organizadas por elas, tinha todo um ritual. Ninguém precisava se deslocar para o centro da cidade para assistir a show. A cultura popular transformou­-se num grande negócio em que entram secretários, prefeitos e produtores para uma programação com artistas que não têm ligação com a festa”.

 Com um disco novo, Cabeça Feita, em que revisita o repertório de Jackson do Pandeiro, Silvério Pessoa montou um repertório junino que agrupa músicas deste álbum com aquele que gravou de Jacinto Silva para o disco Bate o Mancá, além de canções autorais. Sua agenda ainda não está fechada, mas tem acertados dois shows em Caruaru. No dia 17, canta numa espécie de trio elétrico do forró, um palco itinerante que visitará distritos da cidade. Neste, terá como companhia o paraibano Biliu de Campina.

No dia seguinte se apresenta no palco principal do São João de Caruaru, numa noite que terá também Novinho da Paraíba, Nando Cordel e Gatinha Manhosa. Desde 2000, quando lançou Bate o Mancá, Silvério Pessoa é escalado para o Pátio do Forró, o palco “nobre” do São João de Caruaru, isso sem ter emplacado sucesso nacionais e frequentar pouco a mídia:

 “Já me apresentei várias vezes no palco principal de Caruaru, e sempre sem fazer concessões, nem canto Luiz Gonzaga. Faço um mix de meus discos, um apanhado da minha obra ligada à atmosfera da tradição. Não considero que essas bandas façam forró, esses artistas são colocados ali como uma estratégia, para sustentar o discurso de que estão valorizando os forrozeiros. Mas é um despiste, eles quase sempre cantam em horários secundários”, comenta o músico, que já tem vinte anos de estrada.

 Ele começou com o grupo Cascabulho, fundado em 1995, no auge do momento manguebeat, mas que só apareceu para o grande público em 1997, quando foi a revelação do festival Abril Pro Rock. No ano seguinte, o disco de estreia da banda arrebatou duas estatuetas no então badalado Prêmio Sharp, como Melhor Grupo Regional, e Melhor Música. Em 2000, no entanto, às vésperas de uma turnê europeia, Silvério Pessoa saiu do grupo. No final do ano, ele lançou o primeiro álbum solo, o citado e elogiado Bate o Mancá, que lhe abriu as portas para os festivais europeus, com atuação mais constante no Sul da França, chegando a gravar com grupos franceses como o La Talvera.

 Embora traga tatuado no braço, em maiúsculas o nome forró, Silvério não é exatamente um forrozeiro, está melhor acomodado no nicho MPB, mas sua música tem fortes laços com a música nordestina estilizada e reprocessada por Luiz Gonzaga a partir do anos 40. Ele se confessa profundamente irritado com o descaso com que se trata o gênero em sua própria região:

“Tem o discurso de que as programações com artistas de outros gêneros são feitas para atender aos jovens. Acho isso tremendamente equivocado. Uma geração foi formada vendo o São João animado por estas bandas, os artistas de fora. O mercado junino foi sendo formatado por secretários de cultura, que deveriam zelar por este patrimônio cultural que estão diluindo. E este equívoco se estende às escolas, que descaracterizaram a festa. Não têm mais o vínculo com a tradição. Eu faço meu show sem concessões, e a recepção sempre é muito boa. A prova de que há público para a música nordestina. Cabeça Feita já esgotou três edições. Fiz uma tiragem econômica para vender agora em Junho”.

 DIREITOS

 Além da descaracterização do repertório da festa, com o predomínio de sertanejos universitários (em Campina Grande tem até padre cantor na programação), o forró clássico ainda se depara com um obstáculo: o alto custo da liberação das músicas pelas editoras. A caudalosa obra de Luiz Gonzaga só tem sido regravada por medalhões da MPB, pelo alto custo cobrado pela autorização:

“O pessoal vive me cobrando reedições de Bate o Mancá e do Micróbio do Frevo, mas o preço que cobram é inviável. Isto contribui ainda mais para a perda de memória, e mais equívocos. Michel Teló vai apresentar o São João na TV, como se o que ele mostrasse fosse a cultura brasileira, e não é a realidade. Quer dizer, não tem mais rádio nem TV que reforce a tradição, pelo contrário, corroboram com este tipo de São João que está aí. Tem artistas que resistem, mas, para mim, o São João que a gente conheceu, que está no DNA da cultura do Nordeste, corre sério riscos de acabar”

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Fonte: JC Online