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O “capitalismo afetivo” - Por Estevam Dedalus

"Desde a década de 1960 as emoções passaram a fazer parte do mesmo pacote que é vendido a força de trabalho no mercado capitalista"

Todo mundo já deve ter passado pela situação embaraçosa de fingir interesse numa conversa, apenas para não parecer mal-educado. Uma interação meramente protocolar que é seguida por acenos de cabeça, interjeições de espanto, expressões faciais como careta e frisar de testa.

É praticamente certo que, nesses casos, os cínicos levem vantagem; suas performances teatrais costumam ser mais convincentes do que a da grande maioria das pessoas. O que daria um ar de espontaneidade à cena. A vida cotidiana é marcada por esses episódios que não devem ser compreendidos como uma farsa.

Sociólogos chamam esse tipo de comportamento de “atuação superficial”. A escolha do termo é compreensível, porque falamos de um controle expressivo que visa fazer com que os outros nos vejam como desejamos ou que pareçamos atender às expectativas sociais. Assim, damos sinais falsos sobre o que realmente estamos pensando ou sentindo – dissimulando nossas emoções – como quando tentamos parecer felizes numa festa.

A ideia a seguir deve resumir melhor o que pretendo dizer: do mesmo modo que um ator que se prepara para interpretar determinada peça pode seguir uma técnica de atuação típica à escola de teatro inglesa, mais preocupada com pequenos detalhes expressivos da personagem, também pode adotar uma técnica de “atuação profunda” como a da escola americana ou o método Stanislavsky. Ambas fornecem ao ator as condições essenciais para desenvolver, em si mesmos, os pensamentos e emoções da personagem.

A “atuação profunda” eleva o grau de exigência do gerenciamento emocional, pois não se limita a manipular aparências ao buscar interferir diretamente no que queremos sentir. Às vezes nossos sentimentos estão em desacordo com nossas crenças, valores morais e ideologias políticas. Como uma mãe que se sente culpada por não amar seu filho como a sociedade espera, e por isso tenta corrigir o problema procurando alimentar o afeto; ou quando defensores do amor livre sentem ciúme de suas parceiras e agem para controlá-lo.

Cada vez mais o setor de serviços, na atual economia capitalista, exige que seus empregados sejam capazes de oferecer emoções reais aos clientes, como forma de estabelecer uma relação mais duradoura e “sincera” com eles. É preciso que os trabalhadores acreditem no que fazem e que seus repertórios emocionais estejam verdadeiramente alinhados às estratégias das empresas. O que ajuda a entender o surgimento de um importante mercado de “coaching de inteligência emocional”. Espera-se, por exemplo, que um vendedor de planos de saúde tenha fé nos supostos benefícios que oferece aos clientes, que não seja algo “da boca pra fora” – uma mera “atuação superficial”.

Segundo a socióloga norte-americana Arlie Russel Hochschild, pelo menos desde a década de 1960 as emoções passaram a fazer parte do mesmo pacote que é vendido a força de trabalho no mercado capitalista. O que seria possível graças a uma reestruturação econômica que precipitou o surgimento de profissões marcadas pelo maior envolvimento emocional.

Esse, definitivamente, não foi um pré-requisito que os proletários do século XIX tinham que preencher; submetidos a um trabalho quantificável, pouco importava se se sentiam bem ou estavam identificados com o que faziam – desde que cumprissem as metas de produção.

As empresas, no entanto, passaram a explorar os sentimentos dos seus empregados com a ajuda de psicólogos, responsáveis por criar técnicas de aprendizado emocional. São eles que ensinam os empregados a sorrir, controlar a raiva, reelaborar insatisfações, canalizar sentimentos para o melhor desempenho comercial e inculcar em seus corações o apego à organização; o que transformaria um “estilo afetivo” numa espécie de capital. Os sentimentos, desde então, se tornaram sinônimo de lucro e bom desempenho produtivo.

Entre os casos estudados por Hochschild, o da Delta Airlines é um dos mais curiosos. Ela observou como o processo de contratação e preparação das comissárias de bordo dessa empresa tinha como objetivo evitar a “atuação superficial” no atendimento aos passageiros. As mulheres mais bonitas e psicologicamente suscetíveis à manipulação eram o principal alvo na seleção de novos funcionários; após serem escolhidas, acabavam submetidas a treinamentos para despertar emoções “autênticas” e corporificar o “espírito empresarial”.

Podemos afirmar – como fez a socióloga israelense Eva Illouz – que a “competência afetiva” se tornou um capital e um critério para o recrutamento e promoção de pessoal nas empresas. O fenômeno surpreendente é que “as formas afetivas do capital podem ser convertidas em formas monetárias”. Os capitalistas não compram apenas a força de trabalho de seus empregados, mas também as suas emoções.

A “inteligência afetiva” assumiu papel de destaque e sem volta no capitalismo contemporâneo. Não é por acaso que grandes companhias como a L’Oréal medem o desempenho de seus funcionários com base na competência afetiva. De acordo com a empresa de cosméticos francesa, os empregados recrutados pelo novo critério possuem melhores índices produtivos e menor taxa de rotatividade que os contratados com base no critério antigo.

O capitalismo reduziu os afetos a “um simples valor de troca”, atirando-os às “águas gélidas do cálculo egoísta”.

Fonte: Estevam Dedalus
Créditos: Estevam Dedalus