Intolerância perigosa

O barulho dos evangélicos 'Eles têm crescido muito numa onda moralista e cerceadora dos direitos individuais'

Para o sociólogo e professor da USP Ricardo Mariano, o radicalismo no discurso conservador das igrejas evangélicas nunca foi tão evidente.

Para o sociólogo e professor da USP Ricardo Mariano, o radicalismo no discurso conservador das igrejas evangélicas nunca foi tão evidente. Mariano é um estudioso do tema desde o início dos anos 90.  Suas pesquisas na área de sociologia da religião abarcam desde a demonização pentecostal dos cultos afro-brasileiros até a reação dos evangélicos ao Novo Código Civil. Ele percebe que o discurso moralista está ocupando a mente da população e entrando na pauta dos debates de maneira decisiva na próxima eleição presidencial. O evangélico conservador está cada vez mais barulhento.

Mariano escreveu um livro fundamental para se entender religião no país chamado Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (Edições Loyola), já na quinta edição, no qual fala especialmente da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, e da teologia da prosperidade, em que a igreja é intermediária de uma barganha entre Deus e os homens pela bonança terrena e o futuro celestial.

Mariano deu essa entrevista para o blog sobre o avanço parlamentar e a mobilização política dos pentecostais quando havia acabado de voltar do encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado na última semana de outubro em Caxambu (MG). O evento  contou com a participação de 1200 cientistas sociais que trataram exaustivamente dos impasses atuais da democracia brasileira. Foi marcado pela preocupação sobre os destinos do país e a crise na pesquisa científica, abandonada e sem verbas.

A religião foi um dos assuntos em pauta. Mariano, que é secretário geral da Anpocs, apresentou um estudo oportuno sobre a expansão e o ativismo político dos grupos evangélicos conservadores no país. Esses grupos se opõem à ampliação dos direitos civis de minorias sexuais e querem impedir todo tipo de aborto, inclusive em casos de estupro, risco de morte da mãe e fetos anencéfalos.

Eles têm crescido muito nos últimos tempos numa onda moralista e cerceadora dos direitos individuais que se alastra por toda sociedade. Embora não representem a totalidade dos 60 milhões de evangélicos brasileiros, uma comunidade bastante heterogênea, eles apontam uma tendência geral conservadora que pode ser verificada na população religiosa e nos seus representantes parlamentares. “Nos legislativos municipais, estaduais e federal, a maioria, mas não todos, tende a sustentar projetos de lei de caráter conservador no plano moral relativos à sexualidade e à família, por exemplo”, diz Mariano. “Propõem projetos para tratar e reverter a homossexualidade e pretendem discriminar casais de mesmo sexo.” Assuntos relativos à moralidade têm sido um ponto de coesão para os evangélicos. A grande maioria da sua bancada na Câmara, que hoje tem pelo menos 80 deputados, 15% da casa, está de acordo com esses temas.

O que se percebe, segundo ele, é que a radicalização do discurso religioso, em especial relacionado ao conservadorismo moral, pode dar frutos e resultar em dividendos eleitorais a curto prazo. O deputado Marco Feliciano, do PSC, por exemplo, conseguiu visibilidade inédita nos tempos em que comandou a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e expandiu o público de seu discurso hiperconservador. Conseguiu deslanchar. Havia sido eleito com 200 mil votos, em 2010, e saltou para 400 mil, em 2014. “A cruzada moral é apresentada como trunfo da representação política em defesa do evangelho e dos evangélicos”, afirma Mariano. A fórmula funciona muito bem para eleições parlamentares, mas aumenta a rejeição ao político e tira sua competitividade na disputa por cargos majoritários, decididos em eleições com segundo turno. Jair Bolsonaro, que já é candidato à presidência e tem uma agenda de direita vai ter oportunidade de testar esses limites nas próximas eleições.

“Os evangélicos procuram instrumentalizar seu poder político partidário, eleitoral e parlamentar para defender seus interesses institucionais e corporativos, obter recursos públicos para suas obras sociais, isenção do pagamento de taxas e cargos públicos.”

“Os evangélicos passaram a se incorporar em todos os setores, no futebol e até mesmo no tráfico. Boa parte dos traficantes no RJ tem se aproximado de igrejas pentecostais. Antes havia uma fronteira entre as igrejas e o mundo do crime e essa fronteira desapareceu. Você vê a molecada no tráfico dando dízimos ou promovendo shows gospel. E os pastores dão essa abertura porque querem convertê-los.”

“O crescimento do pentecostalismo no Brasil e na América Latina transformou o campo religioso brasileiro nas últimas décadas. Hoje são mais de 60 milhões de evangélicos. Nas periferias das grandes e médias cidades e, em especial, nas regiões metropolitanas é onde os pentecostais mais crescem. Criou-se um cinturão evangélico nas periferias, locais onde os sindicatos, partidos e poderes públicos não chegam”.

“Caberá à população arcar com o custeio do que está deixando de ser pago pelas igrejas em taxas de limpeza urbana. A dívida total é de 920 milhões, mas não é só das igrejas evangélicas.”

“A questão da laicidade, praticamente invisível até os anos 90, emergiu com força à medida que os evangélicos ocuparam a política partidária e eleitoral e os meios de comunicação de massa.”

“O fato é que o STF bancou o ensino religioso confessional. A meu ver, essa decisão foi lamentável. Ainda que o ensino religioso seja facultativo, na prática ele é obrigatório, porque as escolas não oferecem outras opções aos estudantes.”

“Nos legislativos municipais, estaduais e federal, a maioria, mas não todos, tendem a sustentar projetos de lei de caráter conservador no plano moral relativos à sexualidade e à família, por exemplo.”

“Nos últimos 30 anos, quase triplicaram o tamanho de sua bancada. 15% dos deputados federais atualmente são evangélicos.”

“No momento, são cerca de 80 deputados federais atuando na Frente Parlamentar Evangélica. A maior bancada é da Assembleia de Deus, seguida pela da Igreja Universal e, por fim, a dos batistas. Em geral, são os parlamentares vinculados à Assembleia de Deus os mais ativos ou os que mais se destacam na promoção de pautas moralistas conservadoras no Congresso Nacional.”

“Desde o início da redemocratização, todos os candidatos e partidos de médio ou de grande porte negociam apoios e alianças com autoridades evangélicas, sobretudo pentecostais, já que isso é pouco usual e aceitável nas igrejas protestantes históricas.”

“A TV aberta contém 20% da programação religiosa. Grande parte dela é ocupada por evangélicos, sobretudo pela Igreja Universal.”

“Lula é o pré-candidato com maior apoio entre os evangélicos: com 32% de intenção de voto nesse segmento religioso. Mas esse apoio é inferior ao que ele obtém no restante do eleitorado, que é de 36%. Entre os católicos, Lula alcança 40%.”

“Bolsonaro é um aliado antigo de líderes da frente parlamentar evangélica, como Marco Feliciano, João Campos, entre outros. Ele tem se esforçado em construir relações e alianças com dirigentes evangélicos na tentativa de catapultar a sua eleição a presidente da República. Mas candidaturas de centro direita podem inviabilizar completamente a candidatura do Bolsonaro, que é visto também como um sujeito controverso no meio evangélico.”

“Entre os partidos controlados por grupos evangélicos o PRB se destaca pelo pragmatismo, ou pelo peemedebismo, isto é, opta por fazer parte da base de apoio aos governos de plantão, seja de que partido for, em troca de cargos. E o PSC assumiu perfil partidário de extrema direita nos últimos anos.”

“Os evangélicos progressistas são minoritários e pouco visíveis dentro e fora do parlamento.”

“Deus prospera os seus leais servos, os cristãos, por meio da doação de dízimos, de ofertas, que expressam a comprovação de sua fé. Eles podem auferir prosperidade, felicidade, vitória em seus empreendimentos. E a prosperidade não é de ordem só material, mas é a prosperidade de um modo geral na vida.”

“Parte da população tem enorme dificuldade de lidar com as mudanças comportamentais em fluxo nas últimas décadas, com a emergência de novos arranjos familiares e das transformações nas relações de gênero, com a visibilidade pública da união civil de pessoas do mesmo sexo, das novas formas de afeto inclusive sexuais que escapam aos padrões familiar e sexual heteronormativos hegemônicos. Muitos vêem tais mudanças como indecência, falta de vergonha na cara, irrupção de nova Sodoma e Gomorra, o fim dos tempos.”

Fonte: Estadão
Créditos: Morris Kachani