contra censura

Museus se unem por liberdade de expressão enquanto performance no MAM-SP é investigada

Menos de um mês após o Santander Cultural, em Porto Alegre, cancelar a exposição “Queermuseu”, por pressão de pessoas que se diziam contrárias às cenas de “pedofilia, zoofilia e blasfêmia” expostas nas obras, museus e centros culturais tornaram-se alvo de ataques e manifestações inflamadas. Curadores, artistas e funcionários estão recebendo ameaças anônimas, xingamentos e agressões (físicas até). Fake news proliferam pelas redes sociais.

Diante de tudo isso, as principais instituições ligadas ao setor divulgaram nesta terça-feira uma carta com 73 assinaturas. Num dos trechos, o documento diz: “Resistiremos a esse trágico e obscuro momento no que se refere ao respeito mútuo e à garantia da liberdade de expressão”. Do outro lado, Gaudêncio Fidélis, curador de “Queermuseu”, foi convocado a prestar esclarecimentos na CPI dos maus tratos contra crianças e adolescentes.

Depois da exposição em Porto Alegre, a Polícia Civil de Campo Grande (MS) apreendeu a tela “Pedofilia”, em que a artista Alessandra Cunha retratava uma criança assustada diante de um homem nu. Exposta no Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul, a obra foi recolhida atendendo a um grupo de deputados estaduais que registrou “boletim de ocorrência” contra ela. Após mais lenha na fogueira, na semana passada a performance “La bête”, de Wagner Schwartz, realizada dias antes, na abertura do “35º Panorama de Arte Brasileira”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, virou centro da polêmica.

Nela, o artista, nu, manipula uma réplica de um “Bicho”, de Lygia Clark (1920-1988), e deixa seu corpo disponível para que o público interaja da mesma forma com ele. Na ocasião, uma criança, acompanhada da mãe, tocou pés e mãos do artista. O vídeo com esse trecho circulou rapidamente pela internet, fazendo com que muitas pessoas protestassem contra artista, instituição e mãe. O imbróglio foi parar na Justiça, e o Ministério Público de São Paulo anunciou na última terça-feira que vai abrir inquérito civil para apurar se o museu expôs “crianças e adolescentes a conteúdo impróprio”.

O Santander Cultural cancelou a exposição ‘Queermuseu — Cartografias da diferença na arte brasileira’, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, após protestos contra a mostra na instituição e nas redes sociais. Na foto, obra de Hudinilson Jr (1957-2013).

Críticos da mostra afirmaram nas redes sociais que algumas obras (no destaque ‘Cruzando Jesus Cristo com deusa Shiva’, de Fernando Baril) representavam ‘imoralidade’, ‘blasfêmia’ e ‘apologia à zoofilia e pedofilia’. Os comentários contra a exposição viralizaram nas redes, impulsionados por grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL).

Entre as pinturas mais compartilhadas estão ‘Criança viada travesti da lambada’ e ‘Criança viada deusa das águas’, da artista Bia Leite. As obras já foram expostas na Câmara dos Deputados, e não causaram polêmica.

Em nota, o centro cultural afirmou ter entendido que as obras expostas ‘desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo’. Na foto, ‘Et verbum…’, obra de 2011 de Antonio Obá, artista finalista do Prêmio Pipa 2017.

Na época em que a exposição foi anunciada, o Santander informava que ‘valoriza a diversidade e investe em sua unidade de cultura no Sul do País para que ela seja contemporânea, plural e criativa’. Na foto, a obra ‘O peso das coisas’, de Sandro Ka (2012).

Aberta no dia 15 de agosto e prevista para acontecer até 8 de outubro, ‘Queermuseu’ contava com mais de 270 obras, oriundas de coleções públicas e privadas, que exploravam a diversidade de expressão de gênero. Na imagem, ‘O halterofilista’ (1989), de Fernando Baril.

Entre os autores expostos em ‘Queermuseu’ estavam Adriana Varejão, Alfredo Volpi, Candido Portinari, Clóvis Graciano e Lygia Clark. A mostra reunia pinturas, gravuras, fotografias, colagens, esculturas, cerâmicas e vídeos. Na foto, ‘Cenas do interior II’, de Adriana Varejão.

O curador Gaudêncio Fidelis disse ter sido pego de surpresa com o cancelamento da mostra: ‘Não fui consultado pelo Santander sobre o fechamento. Fiquei sabendo pelo Facebook. Logo em seguida, recebi uma rápida ligação da direção do museu, em que fui comunicado da decisão. Perguntaram se eu queria saber a opinião do banco sobre o assunto. Respondi que não precisava, uma vez que a nota divulgada já dizia tudo’.

Num pulo, o debate foi parar na esfera política. No sábado o prefeito de São Paulo, João Doria, publicou vídeo contra “La bête”, dizendo que “tudo tem limite”. No domingo, o prefeito do Rio, Marcello Crivella, divulgou vídeo contra a vinda de “Queermuseu” para o Museu de Arte do Rio (MAR), cuja negociação foi anunciada dias antes. “No MAR não, só se for no fundo do mar”, disse.

A carta divulgada ontem foi articulada após outras instituições não envolvidas com essas polêmicas, como o MAM do Rio e o Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC), também passarem a receber acusações e ameaças. “Limitar e impedir artistas, curadores e instituições é uma clara política de retrocesso face ao processo histórico que implantou um estado democrático de direito no Brasil”, completa o documento.

— O foco não é o embate, e sim a garantia dos direitos de artistas e instituições — diz Marcelo Velloso, diretor do MAC.

“Se a lei não admite que menores de idade tenham acesso a conteúdo pornográfico na modalidade impressa, muito menos se admitirá a exposição real, de um homem nu, para um público infanto-juvenil”, argumenta o advogado curitibano Pierre Lourenço em entrevista compartilhada nas redes sociais pelo Movimento Brasil Livre, um dos grupos que mais têm protestado contra “Queermuseu” e a performance “La bête”.

Um capítulo decisivo na discussão deve acontecer hoje, quando o conselho do Museu de Arte do Rio se reúne para debater a proposta de abrigar a mostra “Queermuseu”. Nove pessoas integram o conselho, incluindo a secretária municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira, e o subsecretário de Cultura, André Marini, além do cineasta Pedro Buarque e da colecionadora Genny Nissenbaum.

Ontem, Crivella disse ter conversado com Nilcemar sobre sua determinação de impedir a mostra. Nilcemar não comentou a opinião do prefeito nem disse o que pensa sobre o assunto, mas afirmou que “aspectos técnicos, financeiros e jurídicos” serão avaliados. E ressaltou que a segurança é fator prioritário diante de “discursos de ódio e atos de violência”. Será o primeiro encontro da nova composição do conselho — no dia 11 de setembro, o prefeito publicou um decreto que alterou sua composição, passando de sete para nove integrantes.

Fonte: O Globo