JORNAL DA PARAÍBA: Quando o abuso sexual começa dentro de casa

Segundo a delegada Joana Darc Nunes, todas as denúncias de abuso sexual que chegam à polícia são investigadas

abuso

Um crime silencioso, que acontece principalmente dentro de casa. Todos os dias, crianças e adolescentes são vítimas de abuso sexual, situação que pode passar despercebida pelo simples fato de que os abusadores, em sua maioria, são pessoas que deveriam oferecer proteção e segurança. Por medo ou vergonha, o abuso sexual acaba silenciado, e nem sempre chega ao conhecimento das autoridades. Enquanto isso, os criminosos ficam impunes, causando dores no corpo e na mente de inocentes. No ano passado, a cada hora, o Disque 100 recebeu três denúncias de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no país a cada hora. Um dado alarmante. Uma realidade obscura para o futuro de crianças e adolescentes. A seguir você conhece histórias de vítimas de abuso sexual na Paraíba e os caminhos para denunciar. Os nomes foram trocados para resguardar as vítimas e seus familiares.

“Não conte nada para sua mãe, isso é segredo nosso”

Parecia um dia como outro qualquer. Rita (nome fictício), 11 anos, assistia televisão deitada no sofá quando o padrasto se aproximou. Desde que a mãe da garota, Sandra (nome fictício), iniciou o novo relacionamento, Rita passou a chamar o padrasto de pai. Gostou dele desde o início. A relação entre a menina e o novo ‘pai’ parecia tranquila, o que deixava Sandra aliviada. Trabalhando como empregada doméstica, a mulher passava um tempo considerável fora de casa e deixava os filhos – Rita e o menino, de 5 anos – com o companheiro.

O padrasto, um homem de 34 anos, representava para a garota a figura de um herói, que ajudava a mãe nos afazeres domésticos enquanto não arranjava emprego como eletricista. Rita, ainda deitada no sofá, ficou sem entender quando o padrasto passou a mão na coxa direita dela. Em seguida, segurou o seu pescoço e sussurrou palavras que só mais tarde ela viria a entender do que se tratava. Começava ali um pesadelo.

Rita foi coagida a ir para o quarto, em silêncio. Ali, ao lado das bonecas com as quais Rita havia brincado de casinha horas antes, aconteceu o abuso. A menina não teve coragem de gritar, mas não parou de chorar um minuto sequer. Naquele instante, sua inocência fora roubada. Antes de sair do quarto, o padrasto segurou seu rosto e disse, em tom de ameaça: “Não conte nada para a sua mãe, isso é segredo nosso”.

Os meses se passaram e Rita continuou sofrendo os abusos, quase todos os dias, na própria cama. Antes extrovertida, a menina agora vivia calada. Tinha um semblante triste. Um dia, quando tomava banho para ir à escola, ouviu a porta se abrir. Rita silenciou e se encolheu no canto da parede. O coração acelerou. Em segundos, sentiu as mãos do padrasto em seus ombros. Sem chance de defesa, foi mais uma vez abusada.

A garota ficou em silêncio por vários meses. Só teve coragem de contar o que tinha acontecido quando viu a mãe se separar do companheiro, por ciúmes. No início, Sandra duvidou da história contada pela menina, mas depois se convenceu de que tudo era verdade. Pensou em procurar a polícia, mas o medo a fez desistir. Rita, hoje com 16 anos, tenta se libertar das lembranças amargas deixadas pelo abuso sexual. Lembranças que parecem não se apagar.

“Ele (o padrasto) dopava minha mãe para fazer sexo comigo”

Ana (nome fictício) lavava as louças do almoço, quando o padrasto apareceu ao seu lado. Ele parecia diferente, nunca havia se comportado daquela forma. Ana, desconcertada, tentava entender a situação. Não deu tempo. Em um ato repentino, o padrasto a puxou pelo braço e a levou, à força, para o quarto. Minutos depois ela chorava no banheiro, enquanto o sangue escorria pelas suas pernas. Essa é a lembrança mais forte que Ana, 12 anos, tem do dia que sofreu abuso sexual pela primeira vez, um dia após sua primeira menstruação.

Sob ameaça, a menina decidiu ficar calada por quase um ano. O homem dopava a companheira para ‘ficar livre’ para cometer os abusos. A mãe da garota só descobriu quando, há um mês, de madrugada, notou que o marido não estava na cama. Nina se levantou e foi olhar no banheiro, mas lá não havia ninguém.

Ela pensou em voltar para a cama, mas resolveu olhar as crianças no segundo quarto da casa. Ana e os dois irmãos menores dividiam a mesma cama. Ao puxar a cortina da porta, Nina viu o marido, sem roupa, deitado em cima da menina. Em estado de choque, a mulher começou a gritar: de raiva, de revolta e de medo. “Não é o que você está pensando”, tentou justificar o companheiro.

Enquanto o casal discutia, Ana, se sentindo culpada, ajeitava a camisola com detalhes infantis e chorava muito. A mãe pegou o telefone para chamar a polícia, mas foi impedida pelo marido – agora agressivo e ameaçador. “Ele correu na sala e pegou o revólver. Voltou para o quarto e disse que ninguém ia falar nada. Eles viram tudo”. Diante da situação, Nina decidiu recuar – e também silenciou. A menina foi abusada por oito meses.

Maria foi abusada pelo avô e só teve coragem de contar depois da morte dele

“Ele beijou minha boca e eu senti nojo”, disse Maria (nome fictício) sobre os abusos sofridos aos 8 anos. Maria morava com a mãe e os avós em uma casa simples, no interior da Paraíba. A mãe da garota, hoje com 16 anos, trabalhava como professora em uma cidade vizinha e passava o dia fora de casa. Maria estudava pela manhã e à tarde ficava em casa. Depois de fazer as tarefas da escola, Maria gostava de brincar no seu quarto. Em um desses dias, a avó da menina foi à casa de uma vizinha, deixando-a sozinha com o avô.

“Lembro que nesse dia eu brincava de escolinha com minhas bonecas. Meu avó chegou e pediu para brincar também e eu deixei, claro. Amava meu avô, era como se fosse meu pai, já que o biológico tinha deixado minha mãe ainda grávida. Nunca passou pela minha cabeça que aquele homem, com quem eu me sentia segura, abusaria da minha inocência”, afirmou. O avô, um homem de 54 anos, se aproximou da neta e a beijou na boca e no pescoço.

“Senti nojo, mas também medo”. Maria foi mais uma vítima de abuso sexual que silenciou. Não contou nada a ninguém, embora desconfiasse que a avó sabia do que se passava. A menina foi abusada, dentro de casa, até os 10 anos, quando então se mudou com a mãe para a capital. No ano passado, quando o avô morreu de infarto, Maria decidiu abrir o jogo com a mãe, que ficou desesperada, mas já não havia o que fazer.

As lembranças do abuso ainda perturbam Maria, que disse sentir raiva de si mesma por ter silenciado, quando deveria denunciar. “Às vezes eu achava que a culpa era minha, mas depois entendi que o errado era o meu avô. Eu era apenas uma criança, quem acreditaria em mim? Quem via meu avô dizia que ele era um homem sério, mas na verdade ele era um monstro”.

Vítimas se sentem culpadas pelo abuso

“Cada vítima tem uma forma de reagir”, disse a delegada Joana Darc Nunes, titular da Delegacia da Infância e Juventude de João Pessoa. Segundo ela, algumas vítimas denunciam o abuso aos pais (principalmente às mães), na escola ou a terceiros, que pode ser um vizinho, um amigo. “Não há uma forma definida de comportamento em relação ao abuso sexual. Há muitos casos nos quais a vítima silencia e começa a sofrer sozinha porque ela acaba se sentindo culpada”, declarou a delegada.

De acordo com Joana Darc, é comum esse sentimento de culpa. “Elas se culpam por serem bonitas, pelo corpo que têm. Não é raro essas meninas apresentarem um quadro depressivo e buscar o isolamento familiar e social”, explicou a delegada. Ela citou o caso de uma garota vítima de abuso que quando ia à praia com a família se recusava a tirar a roupa e ficar só de biquíni ou maiô. “A menina não queria mostrar o corpo com medo de ser desejada”, afirmou. A maioria das vítimas de abuso é do sexo feminino, segundo a delegada.

O número de denúncias de abuso sexual é variável. Há meses que a delegacia recebe 10, 15 casos. Em outros aparecem um ou dois. “Hoje as vítimas têm todo uma rede de apoio. Se ela denuncia e não pode voltar para casa, por exemplo, ela pode ir para instituições de acolhimento. Os órgãos de proteção têm se mostrado eficazes nesses casos”, disse Joana Darc. Por fim a delegada explicou que todas as denúncias de abuso sexual que chegam à polícia são investigadas com zelo para que não sejam cometidas injustiças. “Há denúncias infundadas, onde a intenção é prejudicar alguém, por isso temos que agir sempre com cautela e responsabilidade”, destacou.

Jornal da Paraíba