Intervenção em análise - Rubens Nóbrega

De uma hora pra outra, os defensores públicos podem mudar radicalmente a forma como são tratados pelo novo governo estadual. De desprezados e humilhados, de repente podem ser alçados ao status de respeitáveis adversários ou poderosos inimigos do governador Ricardo Coutinho.

Para tanto, basta que o Procurador Geral da República, o Doutor Roberto Gurgel, acolha os fundamentos de representação que lhe foi encaminhada desde 18 de fevereiro pelos defensores públicos do Estado através de expediente assinado pelo Procurador da República Duciran Farena.

Se acolher a representação dos defensores, o PGR pedirá intervenção federal na Paraíba porque o governador do Estado estaria descumprindo a Constituição Federal, a Estadual, leis federais e estaduais, além de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que têm em comum o reconhecimento da autonomia funcional e administrativa da Defensoria Pública e da capacidade da instituição de elaborar o seu próprio orçamento.

Apesar de todas as provas, evidências e argumentos reunidos pelos defensores públicos, não pensem que é uma decisão fácil para o Doutor Gurgel pedir intervenção na Paraíba ou em qualquer outro Estado. Se fosse, a Assessoria Jurídica da PGR não estaria analisando a representação dos defensores paraibanos desde 25 de março.

Aliás, no Brasil jamais será fácil intervir em um Estado cujo governante aproveita a legitimidade que lhe conferiram as urnas para agir de forma autoritária e arrogante, passando por cima de tudo e de todos, porque não importa se os seus atos são legais ou ilegais, morais ou imorais, justos ou injustos.

Nesse trajeto, sentindo-se acima dos homens e das leis, o que importa ao governante é fazer de todos os seus atos, passos, gestos e atitudes instrumentos da sua vontade pessoal, de sua estratégia política, do seu projeto de poder. Longevo, de preferência. E o mais que se quebre.

Nessa linha, Doutor Ricardo passou o rodo na Defensoria. Editou em janeiro deste ano uma medida provisória que equipara o órgão a uma secretaria de Estado. Mas não fez isso para prestigiar a DP, não. Muito pelo contrário. Fez porque assim pode fazer o que quiser com o dinheiro que deveria ser administrado pela Defensoria.

Estamos falando de algo em torno de R$ 65 milhões (ou 1,08% da Receita Corrente Líquida do Estado), quantia que corresponde ao programado ano passado no Orçamento da Defensoria para 2011. Pois bem, essa grana deveria ser fatiada em 12 meses e cada fatia servida todo mês à DP, que assim poderia aplicar os recursos que lhe são devidos segundo as diretrizes administrativas traçadas pela própria instituição.

Por ser ‘coisa de pobre’

A Defensoria desfruta da autonomia a que já me referi porque lhe foi outorgada expressamente pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004. Quanto à iniciativa para elaborar e propor o seu orçamento, essa está consignada no parágrafo segundo do art. 134 da Constituição Federal.

Como se fosse pouco, ao julgar em abril de 2007 uma ação direta de inconstitucionalidade contra o Estado de Pernambuco, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que é inconstitucional qualquer lei que vincule a Defensoria Pública a uma secretaria de Estado e, mais, que toda a legislação que favorece os defensores públicos é auto-aplicável com eficácia plena.

Mas de que leis estamos tratando? Vamos lá, então. Em primeiro lugar, a Lei Complementar nº 80, de 94, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados.

Essa lei diz logo no seu art. 1º que a Defensoria Pública é “uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, (…) fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”.

Acredito que mora nessa palavra – ‘necessitados’ – a razão de ser e, ao mesmo tempo, o grande nó da Defensoria Pública. Isso porque a lei e a própria Constituição definem que necessitado é quem comprova “insuficiência de recursos”. Ou seja, pobre. Que vem a ser aquele coitado do qual político do tipo que nos governa só lembra em tempo de eleição e no resto do tempo detesta quem tem a obrigação de cuidar de pobre o tempo todo. Defensor público, por exemplo.

Botando tudo abaixo

Depois da Lei Complementar 80/94, a Defensoria Pública teve prerrogativas e competências ampliadas e consolidadas por outra lei complementar, a de nº 132/2009. Essas leis, é bom que se diga, são federais, mas tem uma lei complementar estadual, a de nº 39/2002, que há quase dez anos organizou e consagrou a autonomia funcional e administrativa da Defensoria.

Mas nada disso deve interessar ao governador Ricardo Coutinho, que com uma simples medida provisória botou abaixo tudo quanto é Constituição ou lei que possa conferir a tão falada autonomia à Defensoria Pública. Agora, tem um porém… Nesse caso, Sua Excelência afrontou também decisão do Supremo e aí o bicho pode pegar.

Pode porque está bem claro no art. 34 da Constituição Federal que a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para “prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial” e assegurar princípios constitucionais como “forma republicana, sistema representativo e regime democrático” e os “direitos da pessoa humana”.

Diante e depois de tudo isso, como vocês podem observar, o que está acontecendo na Paraíba é uma clara desobediência a uma decisão do Supremo. Mais: o que está em curso no Estado é o mais completo esquecimento da ‘forma republicana’ de governar associado a inequívoco menosprezo aos direitos de quem mais precisa.

De quem precisa de uma Defensoria Pública, que parece não ter o menor valor para o governo estadual, ao ponto de constituições e leis que protegem aquela instituição apresentarem-se absolutamente inócuas e desmoralizadas diante do quero, mando e posso do atual governante.