desafio histórico

CIRO, O PT E A ESQUERDA: A direita brasileira e latino-americana não sabem ser outra coisa a que não exibir seu servil aos interesses da plutocracia - Por Flávio Lúcio

Ciro foi um crítico de primeira hora das alianças com o PMDB. E mesmo ao ser preterido para dar lugar a Dilma, e depois por Michel Temer, manteve o apoio. O tratamento que recebe, hoje, de certos setores do partido beira a indignidade. Mais ainda, revela a falta de compromisso com o Brasil e seu povo, sobretudo num quadro de ataques a direitos sociais e à soberania.

Quando escuto e leio o que muitos petistas dizem e escrevem hoje a respeito de Ciro Gomes lembro os enfrentamentos que muita gente boa do partido teve nos anos 1980 com Leonel Brizola, hoje, apresentado como um dos ícones da esquerda: “Caudilho! Populista!”

Brizola, claro, não se fazia de rogado e sapecava um “o PT é a UDN de tamancas”, a frase de Darcy Ribeiro, eterno brizolista, que a esquerda não-petista gostava de repetir em razão do apego ao discurso “contra a corrupção” que beirava o moralismo, e, em muitos casos, era mesmo. Isso em embates cara-a-cara num tempo em que a internet, muito menos as redes sociais, estavam ainda distantes de invadir nossas vidas e a forma de fazer política.

Ao longo de quase toda a década de 1980 o PT denunciou sozinho as alianças eleitorais da esquerda quase como um crime contra a classe trabalhadora, discurso que era dirigido, sobretudo, a PCdoB e PCB. No caso de Brizola, este foi ainda mais longe ao permitir que, sem apoios à esquerda nessas regiões, grupos conservadores entrassem no PDT, principalmente no Nordeste. Wilson Braga, por exemplo, foi candidato a governador pelo partido de Brizola, em 1990.

Era um tempo dos grandes quadros políticos nacionais da esquerda, um vigoroso e consistente encontro geracional entre os que foram impedidos de continuar a fazer política pelo Golpe de 1964, como Brizola, Arraes, Luís Carlos Prestes, João Amazonas, Waldir Pires, e as novas gerações dos que nasceram para a política durante a ditadura, entre eles Lula e Fernando Henrique Cardoso. Depois viriam os Lindbergs, as Gleises, os Paloccis.

Durante os anos 1980, a política de alianças do PT foi orientada pelos trotskistas, que rejeitavam acordos até com os comunistas. Estes, depois de terem apoiado Tancredo Neves no Colégio Eleitoral para por fim à ditadura, iniciaram uma aproximação com o PT para o desespero dos antialiancistas. Quando a aliança para a Prefeitura de São Paulo entre PT, PCdoB e PCB se efetivou teve um impacto gigante que derorientou muita gente.

Mas, a vitória de Luíza Erundina na maior e mais importante cidade do Brasil mostrou duas coisas: que o PT finalmente havia se tornado hegemônico na esquerda e que o partido havia se constituído em um poderoso polo aglutinador desse campo, o que se confirmou no ano seguinte na eleição presidencial.
Numa campanha memorável, Lula não apenas superou Brizola, mas a tradição do trabalhismo que ele representava. Uma nova esquerda surgia capaz de ir ao segundo turno e quase derrotar Fernando Collor, o candidato do Consenso de Washington e, por isso mesmo, da Globo, dos bancos, da FIESP e do agronegócio.

O PT cresceu no vácuo de uma combinação de crises, mais ou menos como vivenciamos agora: econômica, ética, de legitimidade que a “Nova República” sarney-demo-peemedebista havia levado o país. Em 1989, ainda vivíamos os rescaldos de uma transição e a memória da ditadura ainda estava muito viva. Além disso, o sistema partidário também se reconfigurava com o PSDB, caminhando para a direita e para ser o aglutinador do polo neoliberal.

Mas, o PT mas só se projetou para o exercício do poder quando foi capaz deixar claro qual era mesmo seu projeto de Brasil. Lula, por exemplo, nunca esteve à vontade com o programa de 1989. O da campanha de 1994, quando a cor vermelha foi abolida da campanha, também não.

Ali, tratava-se de uma confusão que quase levou o PT à rendição ao neoliberalismo no início da década de 1990 − uma inesquecível entrevista de Aluízio Mercadante à revista Exame marcou época na esquerda, − quando influentes petistas de São Paulo chegaram a defender uma aliança estratégica com o PSDB.

Entre 1989 e o segundo governo Lula, o PT não apenas ganhou uma identidade, mas se redefiniu como partido ao incorporar como sua, a tradição iniciada no Brasil por Getúlio Vargas, Jango e Brizola: o modelo econômico ganhou atualidade e mais clareza e suas ideias a respeito da inserção internacional do Brasil assumiram a radicalidade e a ousadia que uma conjuntura marcada pela crise sistêmica da hegemonia americana exigia.

E por que isso aconteceu? Por que esse projeto, como eu já disse, não tem dono, não é apenas de Lula, apesar de Lula ter dado a ele uma base social e política de massas e popular ao integrar nele o povão, os deserdados, os esquecidos. Ele não será, ele já também de Boulos, a julgar pela entrevista concedida por ele ao Roda Viva.

Essa é sempre foi e continua a ser a clivagem fundamental do Brasil: a questão nacional − a defesa da economia brasileira (do investimento público e privado, do emprego, da melhoria e distribuição da renda do trabalho, da democratização do acesso à terra, da melhorias dos serviços públicos), e da unidade nacional (porque essa divisão atual torna qualquer projeto inviável) só podem ser bandeiras da esquerda.

Isso porque a direita brasileira e latino-americana não sabem ser outra coisa a que não exibir seu servil aos interesses da plutocracia e do rentismo, realidade que se expõe com frieza e didatismo insuperáveis quando apenas seis pessoas no Brasil detêm mais riqueza do que mais de 100 milhões de brasileiros! A imagem de Jair Bolsonaro prestando continência à bandeira dos EUA e entregando seu programa econômico a um economista dos bancos é sintomático desse servilismo.

Portanto, qualquer projeto da esquerda que nasça depois de 2018 tem que responder a esse desafio histórico.

Infelizmente, muitos petistas, sobretudo na chamada “esquerda petista”, parecem estar de olho apenas nos nichos para os quais falam e são aplaudidos. Não se aperceberam ainda do tamanho do poder dos adversários e do que está em jogo.

Por isso, soa para mim incompreensível os ataques que alguns petistas proferem contra Ciro Gomes. Ele era um ótimo quadro quando apoiou o PT e deu grande contribuição aos governos Lula e Dilma, e sempre fez isso com lealdade e sem bajulações.

Ciro foi um crítico de primeira hora das alianças com o PMDB. E mesmo ao ser preterido para dar lugar a Dilma, e depois por Michel Temer, manteve o apoio. O tratamento que recebe, hoje, de certos setores do partido beira a indignidade. Mais ainda, revela a falta de compromisso com o Brasil e seu povo, sobretudo num quadro de ataques a direitos sociais e à soberania.

Ainda bem que Lula sempre foi maior, muito maior (em muitos sentidos) que esses setores do PT.

Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: Flávio Lúcio