40 anos do 1º disco

Zé Ramalho: Quando o brejo cruzou a poeira - Por Rolling Stone

"Apenas digo que tudo o que vivi nesse disco é profundamente real e verdadeiro"

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Parece incrível: basta ouvirmos o nome de Zé Ramalho, e quase instantaneamente pensamos em “Avôhai” ou “Vila do Sossego”. O álbum solo de estreia do cantor e compositor paraibano tornou-se uma espécie de RG artístico veterano da música brasileira. Mesmo após quatro décadas e outros projetos bem-sucedidos, este virou uma marca que jamais se desfaz.

Composições próprias e parcerias com Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Lula Côrtes, o material reúne faixas densas e poderosas. Tudo untado por uma psicodelia brejeira e a inconfundível voz grave. Na música “Bicho de 7 Cabeças”, nos deparamos ainda com uma peleja instrumental brilhante. Há uma elegância sonora atemporal nesse disco.

Carlos Alberto Sion foi o produtor e ajudou a moldar a abordagem, de essência simples – cuja receita resumiu-se a voz, viola, baixo elétrico e percussão. “O bom foi que o artista permitiu que trabalhássemos em equipe por uma linguagem diferente do que havia na música brasileira”, diz o produtor. “Usamos as percussões regionais, dando ênfase às partes das violas, porque o Zé tem uma veia country rock muito forte, e o regional nordestino.”

Falar sobre a estreia solo dessa figura única rende perguntas sem fim. Conseguimos uma boa dose delas, e para deixar este especial mais saboroso, dividimos o papo em duas partes. Aqui vai a primeira metade.

Zé Ramalho definiu um estilo com o qual avançou sua discografia dali em diante. Esse disco te desafiou, criativamente, durante algum tempo?
Nesse tempo, 40 anos atrás, a música era uma novidade no Brasil. Fazer música, ser artista, compositor, era um desafio e uma incerteza também. Os critérios das gravadoras, fortes dentro do mercado existente eram rigorosos em relação a contratar novos artistas.

Essas três canções se tornaram, hoje, clássicos da MPB. Se fosse por esse tipo de gente, nunca seriam conhecidas pelo grande público. Foi só na CBS que houve uma atitude por parte da diretoria. O presidente então, Jairo Pires, ao escutar “Avôhai”, abriu os braços na minha frente e declarou: “Vamos gravar!” O portal se abriu e o velho cruzou a soleira! 

Como nasceu o material que viria compor Zé Ramalho?
As músicas foram feitas entre 1975 e 1976. Nas andanças pra lá e pra cá, nos estados da Paraíba e Pernambuco, fui juntando minhas criações musicais. Nesse tempo, eu ainda cursava a faculdade de Medicina na UFPB, até que abandonei os estudos e fui de ônibus para o Rio de Janeiro começar essa jornada. Talvez todas as faixas sejam curiosas pela estranheza das letras que apresentei. Não tinha nada parecido naquela época.

O disco foi bem realizado, musicalmente falando. Nomes de categoria internacional, como o tecladista Patrick Moraz, que tinha substituído Rick Wakeman no Yes, e os geniais brasileiros Dominguinhos, Altamiro Carrilho, Paulo Moura, Bezerra da Silva e Sérgio Dias Baptista abrilhantaram e rechearam o álbum com seus talentos geniais.

Como Patrick Moraz e Sérgio Dias foram parar em seu disco?
Foram convidados pelo produtor, que mantinha contato com eles. Para mim, foi uma felicidade ter tantos músicos de prestígio. E curiosamente a própria imprensa da época não deu o devido valor, só porque era meu álbum, o álbum de um nordestino estreante mostrando essa pegada psicodélica, política e social. Se fosse algum compositor do Sul ou da moda, falariam tudo! Se não falaram, perderam a oportunidade, e hoje não dá mais para se arrepender.

“Avôhai” foi a primeira música sua que ouviu tocar no rádio. Descreva a experiência.
Foi inesquecível, como é para todo artista/compositor que ouve uma música sua pela primeira vez no rádio! Isso também aconteceu com Beatles e todo artista da época. Tinha esse impacto quando se ouvia sua criação musical soando do alto-falante de um táxi. O táxi era um desses amarelos – como diriam os Mamonas Assassinas, uma Brasília amarela – e eu estava indo para o aeroporto do Galeão, numa de minhas cansativas maratonas para divulgar o disco. Foi lindo! Valeu a pena a emoção desse momento!

A projeção do Zé Ramalho artista popular já havia se manifestado em registros anteriores. Por exemplo, na trilha sonora do filme Nordeste: Cordel, Repente e Canção (1975), de Tânia Quaresma, e num obscuro álbum em parceria com Lula Côrtes, o antológico Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol (1975). Este, aliás, ilustra bem diversos aspectos da bagagem do cantor e compositor – tem rock, jazz, folk, ritmos nordestinos e, claro, seu quê indivisível de psicodelia.

Boa parte da tiragem de Paêbirú e a respectiva fita máster foram perdidas em uma enchente no mesmo ano de seu lançamento. A tragédia tornaria as raras cópias remanescentes em itens hoje caríssimos, especialmente se em bom estado.

Ainda que sua carreira estivesse gerando frutos maduros, nada se comparou à homônima estreia solo de 1978. A suculência das músicas perfurou uma já estabelecida e um tanto padronizada MPB. Se realmente foi porque seus gametas se agruparam no som, não se sabe. O certo é que Zé Ramalho caiu de vez no gosto popular país afora.

Leia abaixo a parte final desta entrevista especial com o artista paraibano.

A quantas andava sua cabeça na segunda metade dos anos 1970?
Andava na velocidade da luz! Experiências psicodélicas, experiências orientais, experiências de ondas e viagens que minha geração fazia nesse tempo, desde que houvesse interesse. Não só na cabeça, mas também no aprendizado, tipo: macrobiótica, leituras cosmológicas, esclarecimentos espirituais, sem ter nada a ver com religião, e o perigo de alguns abismos que naturalmente ocorreriam nesse tipo de empreitada.

“Avôhai” ainda carrega um ar místico-misterioso. Você arrisca um palpite para a tamanha força que a canção tem?
A forma como essa música chegou a minha cabeça foi única e especial. Nunca mais aconteceu algo parecido quando compus. Ouvi vozes na minha cabeça que diziam essa palavra, clara e nitidamente: “Avôhai, avôhai, avôhai…”. Era como se fosse uma revelação.

A experiência que tive comendo cogumelos alucinógenos também está na letra: “Amanita matutina, que transparente cortina ao meu redor”. Essa profundidade espiritual foi alcançada com tais substâncias da natureza. Senti a presença alienígena nos céus e vi a natureza a meu redor, bela e cheia de vida!

Qual foi o maior perrengue que enfrentou com seu primeiro disco solo?
Foi com a imprensa da época. Depois que o disco ficou pronto, saiu e foi fartamente distribuído para todos os canais da mídia, os tais “críticos”, que eram funcionários dos jornais travestidos de intelectualidade, criticaram de maneira agressiva. Rejeitaram minha forma de compor, cantar e vestir, demonstrando também um forte preconceito contra o simples fato de eu ser nordestino. Foi uma coisa que eu enfrentei mesmo! Peitando e não me acovardando diante desses boçais.

Como é tocar as músicas de Zé Ramalho depois de tantas e tantas vezes, em turnês extensas, noite após noite? Fica cansado de tocá-las?
Não tem nada disso! Cada música dessas, eu canto pelo menos 100 vezes por ano, dentro dos shows que minha agenda realiza por todo o Brasil, há 40 anos. Ao contrário do que você pensa, sinto é prazer quando toco cada uma! E procuro fazer cada vez melhor. Cada plateia me vê dar o melhor de mim. Enjoo e cansaço não fazem parte dos meus shows.

Zé Ramalho é um disco que traz bastante reflexão, algo pouco visto nos artistas novos. O que poderia dividir conosco após esses 40 anos?
Hoje tudo mudou. Não gosto de dar conselhos. Acho que cada um tem sua experiência, e ela é valida para quem a está vivendo. Me refiro à confecção de um disco nos anos 1970, quando o mercado ainda era o do vinil…  E como era bom gravar nesse tempo! Os estúdios tinham fitas magnéticas que viravam, e o trabalho prolongava-se madrugadas adentro, devido à delongada prática de voltar a fita e recomeçar.

Apenas digo que tudo o que vivi nesse disco é profundamente real e verdadeiro. Não há enganações sentimentais nem propostas agressivas. Meu objetivo, desde esse álbum, é oferecer ao público algo diferente: letras incomuns, sonoridades viajantes, e que tudo isso faça com que o ouvinte se deleite e se sinta fora do mundo, um pouco. É o espírito da psicodelia e do relaxamento humano necessário para viver.

Fonte: Revista Rolling Stone
Créditos: HENRIQUE INGLEZ DE SOUZA