eterno ariano

Se vivo, Ariano Suassuna faria hoje, 90 anos

O menino Ariano, então com sete anos de idade, tinha uma tristeza quando o circo chegava: não poder acompanhar o palhaço Gregório. A mãe, dona Ritinha, não deixava seu filho seguir o palhaço com as crianças pobres do lugar.

Há 20 anos, nesta mesma data (16 de junho de 1997), viajava para o Recife para comemorar os 70 anos do escritor e dramaturgo Ariano Suassuna. Poucos meses depois, em outubro daquele ano, voltava à capital pernambucana para entrevistá-lo para uma série especial do jornal Correio Braziliense sobre o processo criativo dos grandes escritores brasileiros.

Foi nessa conversa que ele começou a revelar detalhes do livro que tinha iniciado em 1981 e que só ficaria pronto na véspera da morte dele, em 2014. Em outubro, será finalmente lançado o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, com dois volumes: “O Jumento Sedutor” e “O Palhaço Tetrafônico”.

Nessa entrevista, o mestre Ariano afirmou que todo artista busca a imortalidade através de sua obra. “A arte é uma espécie de protesto contra a morte”, disse. Hoje, Ariano Suassuna estaria completando 90 anos. Apesar da saudade do amigo, sua obra está mais viva do que nunca.

Leia abaixo a íntegra:

O palhaço Gregório entrava na cidade montado no jumento. Ficava de costas para a cabeça do animal, com o rosto virado para o rabo e para a criançada que corria atrás.

–    Hoje tem espetáculo?, gritava no meio da praça o palhaço.
–    Tem, sim senhor!, respondia em coro a meninada que seguia o palhaço.
–    Tem palhaçada?
–    Tem, sim senhor!
–    Tem malabares?
–    Tem, sim senhor!

Gregório cantava e as crianças respondiam. A música não tinha sentido lógico nenhum. Era música de palhaço, mesmo:

–    Tombei, tombei, mandei tombar!
–    Perna fina no meio do mar.
–    Oi, eu vou ali e volto já.
–    Oi, cabeça de bode não tem que chupar…

Era assim, no início dos anos 30, que entrava em Taperoá, no sertão da Paraíba, o circo Estringhini. A pequena cidade parava para ver os artistas desfilando pela rua. Qualquer semelhança da cena descrita acima com as várias encenações do Auto da Compadecida, obra mais popular da obra de Ariano Suassuna, não poderia mesmo ser mera coincidência.

“Bastava eu ficar sabendo que o circo tinha chegado na cidade para aquele cotidiano cinzento se transformar. Era um acontecimento maravilhoso, mágico. O meu campo de vista se abria para outro universo mais rico, mais festivo, mais bonito”, relembra o romancista, poeta e dramaturgo que se esmerou em recriar na sua obra maravilhas como um circo chegando a uma cidadezinha perdida no sertão.

O circo demorava a aparecer na cidade. Às vezes passava mais de ano sem dar sinal de vida. Mas quando ele surgia, Taperoá vivia dias de festa. Acompanhando o palhaço, revezavam-se equilibristas, mágicos, bailarias e homens da perna-de-pau.  Os integrantes da trupe eram sempre homens fortes e mulheres belíssimas – pelo menos na imaginação daquelas crianças. “As moças deviam ser muito feias, coitadas. Mas na minha cabeça, eram princesas”, lembra Suassuna.

O circo, os folhetos de cordel cantados na feira, o duelo de repentistas… A infância do menino Ariano em Taperoá eternizou-se na obra do imortal da Academia Brasileira de Letras. É no contexto de uma pequena cidade do interior que se passam praticamente todas as suas peças e vivem quase todos os seus personagens.

Aos 70 anos, Suassuna ainda escreve sobre os encantamentos da infância. Um deles era o circo. Mesmo sendo sempre modestos os circos que chegavam a Taperoá. Nenhum deles tinha bicho. Talvez por causa disso, até hoje Ariano não goste de animais no picadeiro. “Um bicho nobre como o tigre, por exemplo, sendo obrigado a subir num tamborete e pular para não sei aonde, eu acho uma falta de respeito, uma desmoralização”, repudia.

O menino Ariano, então com sete anos de idade, tinha uma tristeza quando o circo chegava: não poder acompanhar o palhaço Gregório. A mãe, dona Ritinha, não deixava seu filho seguir o palhaço com as crianças pobres do lugar.

Os meninos que ajudavam o palhaço a divulgar o circo recebiam como pagamento o direito de entrar no espetáculo de graça. Cada pequeno ajudante era assinalado com uma cruz de cinzas na testa. Quem tinha o sinal, não precisava comprar o ingresso. Mas Ariano era o “aristocratazinho” da cidade – na escolha, as crianças falavam que ele era filho de rico, o que o incomodava bastante. E se não podia ajudar o palhaço, não recebia na testa a abençoada cruz feita de cinzas.

“Minha mãe dizia que pagava o meu ingresso. O problema não era esse. Eu queria participar da festa”, relembra o menino, seis décadas depois.

Todo aquele universo vivido no sertão iria marcar para sempre a sua vida. O circo, do ponto de vista do teatro, foi também a primeira grande influência de Ariano Suassuna. Foi nele que assistiu as primeiras peças. Eram melodramas como O Terror da Pedra Morena e A Ladra que o deixavam impressionado.

Mas as encenações também chegavam a Taperoá com as companhias de teatro que às vezes visitavam a cidade, sendo a mais famosa delas a de Barreto Júnior, trazendo comédias.

E assim, nada na obra de Suassuna é por acaso. Não era apenas o circo que integrava esse rico universo popular vivenciado pelo escritor.  Foi em Taperoá que ele assistiu à primeira peça de mamulengo (teatro de bonecos) e ao primeiro duelo de repentistas. A dupla de cantadores que encantou aquele menino imaginoso era formada por Antônio Marinho e Antônio Marinheiro. Nesse mesmo dia, ele ouviu pela primeira vez um folheto de cordel, cantado por Marinho.

Tudo o emocionava. As histórias ouvidas eram sempre recheadas de humor e espontaneidade –  características que começaram a aparecer na obra de Ariano desde os primeiro escritos. Um bom exemplo está na peça A Pena e a Lei, uma das mais importantes do autor.

O personagem principal do primeiro mamulengo que viu, num mercado popular de Taperoá, era um negro chamado Benedito, que, de tão valente, dava uma pisa (surra, no idioma nordestino) na polícia. Curiosamente, no primeiro ato de A Pena e a Lei aparece esse mesmo Benedito, fazendo travessuras semelhantes.

OBRA TALHADA À MÃO

Ariano Suassuna não tem pressa. Escreve e reescreve várias vezes a mesma coisa. Normalmente, escreve uma ou duas versões à mão. Depois, copia à maquia. Corrige. Copia à mão de novo e, à vezes, depois disso tudo, desmancha e recomeça do zero. Foi assim com A Pedra do Reino, que levou 12 anos para ser concluído. E assim também está sendo escrever um novo romance, no qual Ariano vem trabalhando desde 1981.

Recentemente, abandonou o que já tinha produzido e recomeçou o livro com o qual vem sonhando desde que se tornou escritor e ao qual se dedica há 16 anos. O novo livro retoma toda a obra de Suassuna, inclusive peças inéditas em livro, e traz de volta personagens marcantes, como o Quaderna de A Pedra do Reino e de As Conchambranças de Quaderna.

“É altamente penoso, difícil, duro o trabalho de colocar em ordem, de uma forma literária razoável, as visões, os sonhos e quimeras que me perseguem desde menino. Por outro lado, inventar, sonhar, é um dos momentos mais fortes da festa que, para mim, é a criação literária”, observa Suassuna.

Mesmo ocupando o cargo de Secretário de Cultura de Pernambuco, ele reserva parte de suas manhãs a transformar em palavras as visões, sonhos e quimeras.

Ariano tem o costume de revisitar as suas obras. Como a peça Uma Mulher Vestida de Sol. A primeira versão ele escreveu em 1947, quando tinha apenas 20 anos. A segunda vez, dez anos depois. Agora, Ariano trabalha numa terceira versão. “Eu acho sempre que posso fazer melhor”, explica o insatisfeito e exigente escritor.

Na nova versão será incluída A História de Amor de Romeu e Julieta, a mais recente peça do autor, em cartaz no Recife. Dessa fusão sairá, segundo antecipa ao Pensar, “uma tragédia em duas partes”.

Até hoje, Suassuna se nega a escrever em computador. As histórias estão em sua cabeça, que considera o verdadeiro computador. Ele se orgulha de nunca ter perdido uma única linha de sua criação por causa de alguma “pane de rede”.

A máquina de escrever é o máximo de tecnologia a que se permite. Tem necessidade de escrever à mão e não entende como as pessoas podem conseguem criar um poema olhando para o computador. “Bater à máquina é bom para corrigir, já que você fica com uma visibilidade maior. Mas depois eu volto a escrever à mão, para sentir o prazer de escrever”.

Ariano Suassuna acredita na inspiração. E se considera um autor inspirado. Para ele, só depois da revelação é que surgem a razão e a reflexão. “O que eu considero inspiração é tudo aquilo que parte da noite criadora da vida pré-consciente do intelecto”.

Durante a madrugada, quando não está dormindo mas não acordou direito, surgem esses momentos de inspiração. O autor tem sempre papel e caneta na cabeceira e costuma se levantar no meio da noite para fazer anotações. No dia seguinte, começa a desenvolver os sonhos. Às vezes, o problema de um personagem, que Suassuna passou o dia inteiro tentando inutilmente resolver, é solucionado quando ele dorme. Outras vezes, um poema inteiro aparece durante o sono. Como o soneto Sonho, que o Pensar publicou pela primeira vez.

Mas Ariano também sonha acordado: com um livro nas mãos. Para ele, o livro sempre foi objeto sagrado. O prazer da leitura tomou conta daquele menino desde que foi alfabetizado, aos cinco anos de idade, em casa, pela mãe, Dona Ritinha, e pela tia Maria das Neves Dantas Villar.

O prazer é tanto que até hoje ele faz questão de deitar para se deliciar com as aventuras e os dramas que surgem dos livros. No escritório, ele colocou uma cama. É nela que retoma os seus hábitos de infância, enquanto não está escrevendo. O escritório fica em sua própria casa. É um pequeno quarto, que além da cama tem duas mesinhas: uma com uma velha máquina Olivetti e outra na qual costuma escrever à mão.

Suassuna despertou para a literatura através da biblioteca que herdou do pai. O governador João Suassuna era um leitor de qualidade. Não faltavam exemplares de Eça de Queiroz e de Euclides da Cunha. Portanto, a influência do pai, que morreu quando o filho tinha apenas três anos de idade, passou a ser indireta, mas nem por isso menor marcante. “A leitura me dava uma alegria muito grande e naturalmente eu queria ser como aquelas pessoas”, revela.

Através d’Os Sertões, de Euclides da Cunha, ele passou a admirar a figura de Antônio Conselheiro. No capítulo de A Pedra do Reino chamado Almoço do Profeta, o romancista chega citar trechos inteiros dos sermões de Conselheiro. É bom lembrar que Quaderna – personagem central desse romance que o próprio autor considera a sua obra-prima – também quer ser profeta, como foi Antônio Conselheiro, mas nunca conseguiu ser puro o bastante para tornar-se um pastor de almas.

“Conselheiro foi talvez a figura que mais me marcou, porque considero Canudos o episódio mais significativo da história do Brasil. Junto com o Quilombo dos Palmares, o Arraial de Canudos foi o único lugar onde nosso povo se expressou politicamente”, acredita Ariano.

Mas a influência não se deu só na formação política. Foi lendo os livros do folclorista cearense Leonardo Mota sobre cantadores e folhetos de cordel que esse universo popular começou a ser valorizado pelo menino que aos sete anos já era um devorador de livros. “Eu talvez, naquela época, não desse a mesma importância aos cantadores, se não visse que eles eram objetos de livro”, observa.

Auto da Compadecida é baseado em três folhetos da literatura de cordel. Curiosamente, os três estão citados na obra de Leonardo Mota.

Os livros de Monteiro Lobato também marcaram muito a infância do escritor. Principalmente porque o cenário das reinações de Narizinho, Pedrinho e Cia era um sítio que Suassuna achava muito parecido com as fazendas em que vivia. “Emília era para o Monteiro Lobato o que João Grilo (herói do Auto da Compadecida) é para mim”, compara.

Mas os romances de aventura eram os prediletos. Ainda hoje Suassuna relê com grande encanto Scaramouche, de Rafael Sabatini. “Eu acho que foi através das histórias do grupo de teatro ambulante do livro que eu tive o meu primeiro encantamento com o teatro”, revela.

Foi com apenas 12 anos que Ariano teve coragem de escrever o seu primeiro conto. A trama tinha três personagens e todos morriam. Um deles chegava em casa, pegava a mulher com outro, matava os dois e se suicidava. “Que dramalhão desgraçado… Não podia ser pior”, observa o crítico severo.

IMORTAL NA VIDA E NA OBRA

Para Ariano, o homem foi criado para a imortalidade. Segundo ele, a morte só surge por causa do mal, sendo esse um problema fundamental de sua vida. “Nenhum de nós acredita na nossa própria morte.” Essa dificuldade existencial de Suassuna está bem clara no personagem Quaderna, do romance A Pedra do Reino.

Quaderna busca a imortalidade obsessivamente através da tentativa de entrar para a Academia. Nesse livro, várias passagens estão recheadas de símbolos. A busca da imortalidade real, por exemplo, aparentemente é só literária. A busca do tesouro e a tentativa de construir o castelo é, na verdade, o símbolo de uma união com Deus, uma influência que o escritor recebeu de Santa Tereza d’Ávila, a poeta mística espanhola, do século XVI, que escreveu, entre outras obras, o Castelo Interior.

Talvez Quaderna seja o personagem com o qual Suassuna mais se identifique, em toda a sua ficção. Mas não é só em Quaderna que estão presentes características do autor. Todas as histórias contadas por Ariano são recriações de histórias populares ou de histórias pessoais. Assim como os personagens, que ora são recriações de personagens populares e de folhetos, ora são familiares ou pessoas que conheceu.

Quase todos os protagonistas da obra de Ariano têm algo da personalidade do seu criador. No Auto da Compadecida, por exemplo, ele se identifica mais com o personagem Chicó, o inseparável amigo de João Grilo. Chicó é um sujeito imaginoso, que vive “mentindo” e inventando história e morre de medo da morte.

“A morte é um fato que deveria ser normal. Infelizmente, não é. Se o homem fosse um animal, talvez ela fosse menos temível. Avalie-se então como é terrível para o homem, que foi capaz de conceber a imortalidade. Agora, só posso saber como vou me comportar quando chegar a hora. Pode ser que eu me acovarde. Quem não tiver medo da morte, que atire a primeira pedra’, desafia o imortal (da Academia Brasileira de Letras e da Academia Taperoense de Poesia).

As experiências de vida de Suassuna aparecem diretamente ou de forma “mascarada” em toda a sua obra. Algumas vezes, sua própria vida acaba tomando o espaço da ficção no livro. Foi assim com uma das versões feita para A Pedra do Reino. Quando acabou, Suassuna entregou os escritos para sua irmã Germana. Ao ler, ela levou um susto. A morte do tio de Quaderna era igual à morte de João Dantas, tio de Ariano, político degolado na revolução de 30. “Inconscientemente eu tinha feito isso”, admite. Na versão final do livro, a família Quaderna é uma recriação caricaturada e literária dos Suassunas.

Talvez a interferência de sua própria vida na literatura esteja presente da forma mais explícita no livro inacabado Vida do Presidente Suassuna, Cavaleiro Sertanejo. O livro resgatava a história de seu pai, o governador da Paraíba assassinado em 1930. “Mas não aguentei. A carga era muito dolorosa e parei”, revela Ariano. Apesar do pouco tempo de convivência, o pai foi uma das pessoas que mais influenciaram a personalidade do escritor.

Também no romance O Rei Degolado, que seria a continuação da A Pedra do Reino, a carga biográfica do pai reapareceu fortemente. Por isso, Suassuna interrompeu a trilogia. Tinha perdido o rumo da história da sua literatura, dominado pela própria vida.

A MISSÃO E A FESTA

Neste momento, Suassuna está mais empolgado do que nunca. Espera concluir o tão esperado livro novo até janeiro do próximo ano, após inúmeras tentativas. São dois narradores: um deles (o já conhecido Quaderna) representa o rural; o outro, cujo nome mantém em segredo, fala em nome da cidade grande. Eis aí uma boa surpresa para o leitor: pela primeira vez o universo urbano entra na trama de Ariano, até então marcada exclusivamente por um ambiente rural, que ele acreditava ser o Brasil real. Mas talvez poucos brasileiros percebam a novidade.

“Eu não sou um escritor de poucos livros, nem de muitos leitores. Hoje, ninguém lê romance de mais de 600 páginas. Stendhal costumava escrever no fim de seus livros a frase-dedicatória: “Aos felizes poucos”. No meu caso, não sei se meus leitores são felizes. Mas sei, com absoluta certeza, que são poucos”, constata.

É uma constatação sem mágoa. Para ele, não faz diferença o número de leitores: “Literatura para mim é missão, vocação e festa”, assegura o escritor que não admite ver sua obra como objeto de mercado.

“É no meu romance, no meu teatro e na minha poesia que eu danço, toco e canto”, revela um Ariano apaixonado pelo seu ofício. “Para mim não existe diferença entre a literatura e a vida. A literatura foi o caminho que eu encontrei para enfrentar essa bela tarefa de viver”.

COMO NASCE UM LIVRO

1)    Origem das Histórias
“Todas as histórias contadas por mim são recriações de histórias populares ou de histórias pessoais. Eu tinha alguns encantamentos na infância. Entre esses, os mais fortes eram o circo e a leitura. Todo esse mundo renasce anos depois quando estou escrevendo um livro. Como escritor, eu sou aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que ele deixou.”

2)    Desenvolvimento da Narrativa
“Para mim é muito importante a presença de um narrador, como Quaderna, de A Pedra do Reino. Quaderna tem coisas do autor, mas não é ele. É o próprio narrador. Isso me facilita bastante durante o desenvolvimento do livro. Enquanto eu estava escrevendo esse romance, parei em vários momentos, porque percebia que o narrador se confundia com o próprio autor, no caso, eu.”

3)    Criação dos personagens
“Meus personagens ora são recriações de personagens populares e de folhetos de cordel, ora são familiares ou pessoas que eu conheci. No Auto da Compadecida, por exemplo, estão presentes o Palhaço e João Grilo. O Palhaço é inspirado no palhaço Gregório da minha infância em Taperoá. Já o João Grilo é o típico nordeste ‘amarelo’, que tenta sobreviver no sertão de forma imaginosa. Costumo dizer que a astúcia é a coragem do pobre. O nome dele é uma homenagem ao personagem de cordel e a um vendedor de jornal astucioso que eu conheci na década de 50 e que tinha esse apelido.”

4)    Rotina e Cotidiano
“Agora estou reservando as manhãs para escrever. Assumir a Secretaria de Cultura me atrapalhou muito no primeiro momento. Cheguei a interromper o romance que estou escrevendo. Nos primeiros meses, não acrescentei uma única linha. Mas consegui retomar. Tenho que concluí-lo. Para mim vai ser uma frustração terrível não terminar o livro com o qual sonhei a vida toda. Aposentei-me da universidade para isso.”

TRECHO
(comentado pelo autor)

A Pedra do Reino
“A Sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro pedregoso. Só lhe pertence o que por você foi decifrado. Beba o fogo na taça de pedra dos Lajedos. Registre as malhas e o pêlo fulvo do Jaguar, o pêlo vermelho da Suçuarana, o Cacto com seus frutos estrelados. Anote o pássaro com sua flecha aurinegra e a Tocha incendiada das macambiras cor de sangue. Salve o que vai perecer: O Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a luta sem grandeza, o Heróico assassinado em segredo. O que foi marcado de estrelas – tudo aquilo que depois de salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu. Celebre a raça de Reis escusos, com a Coroa pingando sangue: o Cavaleiro em sua Busca errante, a Dama com mãos ocultas, os Anjos com sua espada, e o Sol malhado do Divino com seu Gavião de ouro. Entre o Sol e os cardos, entre a pedra e a Estrela, você caminha no inconcebível. Por isso, mesmo sem decifrá-lo, tem que cantar o enigma da Fronteira, a estranha região onde o sangue se queima aos olhos de fogo da Onça-Malhada do Divino. Faça isso, sob pena de morte! Mas sabendo, desde já, que é inútil. Quebre as cordas de prata da Viola: a Prisão já foi decretada. Colocaram grossas barras e correntes ferrujosas na Cadeia. Ergueram o Patíbulo com madeira nova e afiaram o gume do Machado. O Estigma permanece. O silêncio queima o veneno das Serpentes, e, no Campo de sono ensanguentado, arde em brasa o Sonho perdido, tentando em vão reedificar seus Dias, para sempre destroçados.” (páginas 241 e 242)

– Nesse trecho, Quaderna adormece numa espreguiçadeira. Então, ele sonha que a morte, que no Sertão é uma mulher, chamada Caetana, entra e começa a traçar na parede com o dedo letras de fogo que organizam uma espécie de poema. Considero esse poema em prosa o núcleo da Pedra do Reino. Porque é um texto que alude à possibilidade da morte e à arte como uma tentativa de enfrentar a morte na busca de uma precária, mas, ainda assim, bela imortalidade. O poeta morre, mas se ele conseguir fazer uma coisa bonita, ele fica. Essa é a busca de todo artista: a imortalidade através da arte. A arte é uma espécie de protesto contra a morte. Se eu tivesse que escolher apenas uma obra minha para a posteridade, ela seria A Pedra do Reino.

ORELHA

Ariano Suassuna nasceu na capital da Paraíba, em 16 de junho de 1927. Quando Ariano tinha apenas três anos de idade, seu pai, João Suassuna, que foi governador do estado, foi assassinado pelo grupo político adversário. Sua mãe, dona Rita, mudou-se com a família para a cidade de Taperoá, no sertão paraibano, onde ele fez os estudos primários.

Depois, transferiu-se para o Recife, onde viveu até 2014. Foi casado com Zélia Suassuna, grande amor de sua vida, teve seis filhos e vários netos. Sua obra mais conhecida é o Auto da Compadecida, de 1955. No início dos anos 70, lançou o Movimento Armorial, que defendia a fusão da cultura popular ao erudito na pintura, gravura, tapeçaria, cerâmica, música, teatro, poesia e romance.

Com parte de sua obra traduzida para o francês, inglês, espanhol, alemão e holandês, foi eleito por unanimidade, em 1989, para a Academia Brasileira de Letras. Recentemente, teve duas de suas peças adaptadas pela Globo: Uma Mulher Vestida de Sol e A Farsa da Boa Preguiça. Sua obra mais popular virou filme em Os Trapalhões no Auto da Compadecida, com Renato Aragão no papel de João Grilo. Atualmente, é secretário de Cultura de Pernambuco. Em 1999, o Auto da Compadecida foi adaptado pelo diretor Guel Arraes para a TV e, depois, para o cinema.

Fonte: Blog do Camarotti