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Pornô feminista ganha espaço no mercado de filmes adultos do Brasil: 'Mulheres também gostam de sexo'

Personagem feminina como protagonista das produções evita estereótipos e serve de alternativa ao convencional

A atriz Giovana Bombom, que se identifica como ativista e atua em filmes do segmento pornografia feminista (Foto: Divulgação)

A atriz Giovana Bombom, que se identifica como ativista e atua em filmes do segmento pornografia feminista (Foto: Divulgação)

É o clichê do filme pornográfico. Uma mulher – em geral, loira, curvilínea, com silicone e maquiagem muito visível – escuta a campainha de casa. Ao abrir a porta, ela dá de cara com um homem – em geral, musculoso, tipo galã e entregador (de pizza, por exemplo).

Eles iniciam um diálogo bastante aleatório que dura menos de 30 segundos. Motivo: é hora do sexo. Afinal, os dois estavam ali para isto mesmo: o ator, na figura do dominador que vai ser satisfeito; a atriz, como a submissa que mais geme do que fala (palavrão). Tudo para entreter um público majoritariamente masculino.

A pornografia feminista tem a proposta de ser justamente uma alternativa a este tipo de filme adulto hegemônimo, conhecido por “pornô mainstream” ou tradicional. Surgida nos anos 1980 nos Estados Unidos, a vertente feminista vem ganhando atualmente cada vez mais atenção no mercado de filmes adultos.

No lugar dos corpos curvilíneos e esculturais, físicos imperfeitos. No lugar do sexo aleatório e do prazer encenado, o realismo. E, sobretudo, no lugar do homem contolador e da mulher obrigatoriamente servil, o protagonismo feminino.

Atrizes, profissionais do setor e pesquisadores do tema ouvidos pelo G1atribuem o espaço crescente aberto para o pornô feminista, em parte, aos recentes movimentos que lutam por igualdade entre gêneros e por respeito e reconhecimento do papel mulher na sociedade.

“Mulher gosta de sexo também”, afirma a atriz Emme White, de 37 anos e que faz filmes pornôs há três. “O que mulher não gosta de ver é gemido fake, o sexo sem sentido e sempre visando só o prazer do homem. A mulher quer ver coisas que ela de repente se imagina fazendo.”

Maurício Paletta, diretor da Playboy do Brasil, grupo que controla o canal a cabo de filmes pornô Sexy Hot, principal exibidor do país, afirma que o nicho do pornô feminista “é um negócio que está completamente em voga, e a gente acompanha essa tendência”.

De acordo com ele, a Sexy Hot Produções, produtora que o canal lançou neste ano, finalizou 14 das 36 produções previstas para 2018. “Desses 14, quatro já estão nesta linha [feminista]. Até o final do ano, queremos mais três, no mínimo”, antecipa Paletta.

“É uma demanda que vimos, sim, dos nossos assinantes. Estamos buscando isso da melhor maneira possível, inclusive pautando esse tipo de filme.”

Dentre as características do pornô feminista, estão:

  • A mulher é protagonista
  • A equipe por trás das câmeras (diretora, câmeras etc.) também é formada por mulheres
  • A mulher em cena não é obrigatoriamente submissa (a menos que seja esse o desejo dela)
  • Sem preconceito com corpos, com variedade de tipos no elenco, que pode fugir do estereótipo (branca, loira e siliconada, no caso delas; musculosos, no caso deles)
  • Filmes com histórias: nada de ir de cara para o sexo sem contexto (isso não significa que seja uma versão romântica ou inocente do pornô convencional)
  • Sexo realista, sem tanta encenação
  • Cuidado com a estética (fotografia, figurino, maquiagem)
  • Sexo oral nas mulheres tem mais espaço e dura mais
  • Mostra a fragilidade do homem (ele pode aparecer como o submisso, se for o caso)
  • Filmes que se preocupam em agradar o público feminino, mas que não são voltados somente a mulheres nem são contra homens
  • Os enredos não se limitam de sexo entre mulheres; há sexo variado: hétero, gay, lésbico, trans etc.

Além disso, entre 2006 e 2015 a sex shop canadense Good For Her promoveu um prêmio chamado The Feminist Porn Awards (espécie de Oscar do segmento). Dentre os critérios que avaliação, estavam: destaque para o prazer feminino, qualidade técnica, inclusão (de “sexualidades marginalizadas ou ignoradas”), desprezo por estereótipos e público variado.

Com a palavra, as atrizes pornôs

Alessandra Maia:

A atriz pornô Alessandra Maia (Foto: Divulgação)

A atriz pornô Alessandra Maia (Foto: Divulgação)

Aos 40 anos e fazendo filmes há dez (apareceu em quase cem produções), Alessandra Maia diz que era “uma atriz extremamente hardcore”. Ganhadora do Prêmio Sexy Hot, considerado o Oscar do pornô nacional, ela recentemente passou a atuar em produções feministas.

“São histórias reais, é o que acontece na vida: uma pessoa normal, com um biótipo normal, nada de mulher cavalona, fitness.”

Alessandra comemora o fato de ter tido de decorar textos para uma recente produção desse novo nicho ao qual aderiu. Demorou um mês para gravar quatro cenas (no pornô convencional, diz que conclui o trabalho em dois dias):

“Foi uma preparação bem maior, ensaio com um ator profissional, bastante exercício de posição, nível de emoção. Tem um desgaste psicológico também”.

Para a atriz, o filme pornô feminista “passa por não ficar só denegrindo a imagem da mulher”. “Nos filmes de antigamente, era só palavrão, baixo calão. Agora, deu uma melhorada. Porque era disso que o público gostava. Hoje, já existem outros tipos de público para assistir.”

Giovana Bombom:

Giovana Bombom, de 27 anos, faz filmes pornôs há dois. Apareceu em cerca de 30 filmes. “Ainda tem muito essa ideia de que o homem faz pornô, e a mulher é carne”, afirma. A atriz, que diz não fazer somente filmes adultos, se descreve como militante:

“Para eu entrar [no mercado pornográfio] foi difícil. Falei: ‘Não vou apagar minhas raízes para fazer meu nome’. Porque eu estaria sendo só mais uma de cabelo liso, e não vim para isso. O público preto… Ainda mais que faço teatro e cinema negro – isso tem uma ligação com meu pessoal e meu trabalho. Sou ativista.”

Bombom lembra ter ouvido elogios de espectadoras:

“Elas me falam: ‘Eu não gostava de pornô. Mas, quando você começou a gravar, fui assistindo, porque seu cabelo é igual ao meu, o tamanho dos seus seios é igual ao dos meus'”.

Ela arrisca uma explicação para o fato de o público feminino não consumir habitualmente o pornô convencional:

“Eu já ouvi muitas mulheres falarem: ‘Ah, eu não vou assistir pornô porque eles colocam uma mulher gostosona, siliconada. E a gente – que não tem silicone, que tem defeito – vai ficar como? Diminuída'”.

Emme White:

Emme White nas gravações de 'Urbex fuckers'  (Foto: Divulgação/Sexy Hot)

Emme White nas gravações de ‘Urbex fuckers’ (Foto: Divulgação/Sexy Hot)

“O pornô feminista é aquele que, sobretudo, respeita a vontade da mulher e dá mais atenção ao prazer da mulher. Não é aquele filme em que a mulher vai chegar e focar só no prazer do homem”, compara Emme White.

Também ganhadora do Prêmio Sexy Hot, a atriz também faz filmes tradicionais. “Feminismo é a liberdade da mulher para fazer o que quiser e como quiser”, explica.

“As feministas radicais que são contra o pornô veem o pornô com maus olhos. Porque muitas vezes a mulher está ali [no filme] submissa e cedendo à vontade dos homens. Mas existem muitas mulheres que, mesmo sendo feministas, gostam de um sexo assim: mais submisso.”

A atriz afirma: “Eu me considero feminista. E quero ter essa liberdade de poder ser atriz pornô sem ser julgada nem condenada por isso. Eu me sinto livre em frente às câmeras para fazer sexo. Gosto de sexo e não tenho vergonha de me mostrar fazendo sexo.”

A diretora de filmes pornôs

Diretora de filmes pornográficos, Mayara Medeiros, a May, começou a trabalhar em 2006 na produtora XPlastic. Inicialmente atuava como produtora, mas há três anos passou a dirigir.

“[No mercado pornô] Tem mais demanda e mais mulheres trabalhando. Antes, era muito difícil ter aceitação de meninas”, lembra.

“Quando comecei, aos 18 anos, eu era a única menina atrás das câmeras que eu conhecia. Hoje, já tem outras meninas. Poucas, mas já tem mais, já não ando sozinha. Algumas se sentem mais à vontade. E quem está assistindo também.”

A diretora diz que “o lugar da sexualidade sempre pertenceu aos homens e sempre foi negado às mulheres”: “Qualquer mulher que quisesse ser dona da própria sexualidade, era considerada bruxa e puta, no pior sentido da palavra”.

Em seus filmes, ela procura “colocar a fragilidade masculina, um tabu”. “Do mesmo jeito que a gente quer descontruir a imagem da mulher subjugada durante o sexo o tempo todo, nenhum homem precisa ser o super-herói o tempo todo”, afirma.

“Essa fragilidade masculina pode aparecer em vários takes: desde um personagem que está em dúvida se quer ou não fazer alguma coisa ou até mesmo mostrar um take do cara de pau mole. Num filme tradicional, isso nunca vai acontecer (risos).”

A diretora dá um exemplo prático da abordagem que propõe:

“Sabemos que um fetiche masculino é ver duas mulheres [fazendo sexo]. Mas não vamos colocar uma delas com a unha gigante. Porque não faz sentido, nunca vai acontecer, vai machucar a outra (risos). Numa produção mainstream, é isto que a gente vê: duas mulheres esculturais, com corpo tradicional do que se entende ser sexy, e elas se pegando com as unhas enormes. Gente, essa unha vai se perder lá (risos).”

Feminismo e pornografia: história

A psicóloga Maria Eduarda Ramos é autora da tese “Pornografia, resistências e feminismos: estratégias políticas feministas de produções audiovisuais pornográficas”, defendida em 2015 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

“A ‘guerra dos sexos’ ou ‘sex war’ teve como cenário os Estados Unidos e teve importância para a história da pornografia feminista. Não há um feminismo, mas feminismos. Nesses, há ideias diferentes sobre a questão de pornografia”, lembra a pesquisadora.

“Nos anos 1970 e 1980 (nos EUA), feministas reivindicavam leis antipornografia, argumentando que a pornografia era a causa da violência contra mulheres. Por outra parte, algumas feministas contra- atacavam esses discursos e apoiavam alternativas sexuais que implicavam na defesa do prazer (sex positive). Essa discussões permanecem entre feministas atualmente, encontram-se grupos das duas vertentes nas redes sociais.”

Maria Eduarda cita que “entre as que defendiam o prazer e a possibilidade de a pornografia ser utilizada e inventada de outra forma como luta de liberdade sexual estavam feministas militantes, estudiosas, lésbicas, pessoas do movimento sadomasoquista, prostitutas, atrizes pornôs”.

Na época, estrelas do segmento, como Annie Sprinkle, Candida Royalle, Veronica Vera, Gloria Leonard e Veronica Hart, formaram um grupo para discutir a seguinte questão: “Há uma pornografia feminista?”.

Como definir ‘pornografia feminista’?

A diretora sueca de filmes pornôs Erika Lust, em foto de perfil no Facebook (Foto: Divulgação)

A diretora sueca de filmes pornôs Erika Lust, em foto de perfil no Facebook (Foto: Divulgação)

De acordo com Maria Eduarda Ramos, “não há critérios ou alguém que diga quando um filme é feminista ou não”. O termo “pornô feminista”, portanto, se aplicaria a filmes definidos como tal por seus diretores ou diretoras. E “também filmes pornôs que podem nos fazer refletir questões a partir de ideias feministas”.

Como exemplo de diretoras que se denominam femininas, a pesquisadora cita Petra Joy e Erika Lust, a diretora sueca que talvez seja o nome mais conhecido do mundo neste nicho. Autora de um livro sobre pornô feminista, em 2014 ela deu uma palestra no TED intitulada “É hora de o pornô mudar”.

Do site oficial de Erika, consta a seguinte declaração de princípios: “Eu prometo criar uma nova onda no cinema adulto. Quero mostrar toda a paixão, intimidade, amor e luxúria no sexo, onde o ponto de vista feminino é vital, a estética é um prazer para todos os sentidos, e aqueles que buscam uma alternativa ao pornô mainstream podem se sentir em casa”.

Maria Eduarda observa que “o feminismo de Lust tem como sujeitos mulheres brancas, de camadas abastadas, que fantasiam com cenários luxuosos, etc.”. “É válido? Claro, é feminismo com sujeitos específicos. Mas há outros feminismos que abarcam outros sujeitos, outras mulheres.”

Erika não é unanimidade e há quem a critique no meio justamente por não evitar tanto assim clichês estéticos e por uma suposta “falta de representatividade”.

‘Continuidade’

A jornalista chilena Oriana Valentina Miranda Navarrete é integrante do coletivo feminista Vaginas Ilustradas e autora da dissertação de mestrado “Muestra Marrana 2015: Corpos femininos no pós-pornô latino-americano”, defendida em 2016 na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Ela não acredita que o pornô feminista represente ruptura com relação ao pornô tradicional. “Mais do que isso, é uma continuação. Não é tipo: ‘O pornô tem de terminar ou é errado'”, afirma.

E continua: “O que pode estar acontecendo é um questionamento da parte da feministas sobre como a sexualidade está sendo transmitida às pessoas mais novas, incluindo as crianças”.

“As primeiras imagens ou regras sobre o sexo que as crianças recebem provêm do pornô. O que o pornô está dizendo a essas mulheres e homens jovens? Como é a forma como vão se relacionar? O que o pornô mainstream está dizendo sobre a possibilidade de outras sexualidades e opções?”

Fonte: G1
Créditos: Cauê Muraro