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“É claramente uma ação movida pelo preconceito e pela transfobia”, diz diretora de peça censurada

O espetáculo teatral “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, que deveria ter se apresentado na noite desta sexta-feira (15), no Sesc Jundiaí, foi proibida, por determinação judicial, dando prosseguimento e uma escala de manifestações artísticas censuradas nos últimos dias. A peça, escrito por Jo Clifford na Escócia, foi trazida para o Brasil pela diretora Natália Mallo. Trata-se de um monólogo, protagonizado pela atriz e travesti Renata Carvalho (ambas na foto), e que estreou há um ano.

“O texto imagina Jesus no tempo presente no corpo de uma mulher trans, travesti no nosso caso, e traz histórias bíblicas conhecidas numa perspectiva contemporânea para falar sobre os sistemas de opressão estruturais que regem a nossa vida. É um ritual e um espaço de resistência, mas, sobretudo, uma contação de histórias e uma experiência teatral. Em nenhum momento ofende a ideia de Jesus, pelo contrário, resgata a essência de uma mensagem de afirmação da vida com bastante delicadeza. Emociona e traz reflexão, faz a gente acordar e desafia a nossa percepção do diferente. Talvez por isso seja considerado tão perigoso”, define Natália.

Fórum – O espetáculo está iniciando temporada ou já se apresentou em outras cidades? Já teve problemas desse tipo antes?

Natália Mallo – ​O espetáculo estreou há um ano e tem circulado por diversas cidades de todo o país, passando por teatros, instituições (Sesc, Itaú Cultural, Tomie Ohtake) e pelos festivais internacionais (Filo, Porto Alegre em Cena, Cena Contemporânea). Já houve ameaças de censura, pressão, campanhas de difamação na internet etc, mas esta é a primeira vez que um espetáculo nosso é cancelado.​

Fórum – Você avalia a atitude desse juiz, Luiz Antonio de Campos Jr., como preconceituosa?

Natália Mallo – ​O conteúdo da liminar fala por si, e está disponível para quem quiser ler. É um tratado de preconceito e fundamentalismo. Fala de uma aplicação da lei a serviço de uma série de interesses e visões de mundo (religiosas e políticas) que se articulam entre si e que, em definitiva, veem em trabalhos como este uma ameaça à ordem estabelecida e ao sistema de privilégios que dela decorre.​ Ninguém se dispôs a assistir ou conhecer o trabalho, condenam pelo simples fato de ter uma travesti em cena. É claramente uma ação movida pelo preconceito e pela transfobia.

Fórum – Você disse que isso já vinha sendo articulado por há alguns dias por congregações religiosas, políticos e até pela TFP (Tradição, Família e Propriedade). Como esse fato chegou a seu conhecimento?

Natália Mallo – ​A gente monitora as redes sociais, acompanha postagens e comentários. Fazemos captura de tela das mensagens ofensivas e ameaças que recebemos. Temos também assessoria legal que está sempre pronta a agir. Mas, de modo geral, até hoje, as coisas estavam correndo com uma certa tranquilidade. A peça foi apresentada mais de 60 vezes, no Brasil todo.  ​

Fórum – O que vocês pretendem fazer agora?

​Natália Mallo – Contamos com amparo jurídico. Temos o respaldo de instituições importantes da cultura. Temos uma rede mundial que conhece o trabalho que fazemos e nos apoia. Temos a comunidade LGBTQ do nosso lado, artistas, acadêmicos. E, sobretudo, o nosso público, nos dando apoio e visibilidade para o trabalho e para os desdobramentos que ele gera. Ah, e também temos a benção da Rainha Jesus.

Fórum – Esta semana, tivemos vários episódios de censura em manifestações artísticas, como exposições de artes plásticas, quadros e até mesmo a uma obra de Michelangelo. Como observa essa onda de retrocesso, que está atacando nossa cultura? Como combater se o poder judiciário reforça a censura?

Natália Mallo – ​Não tem uma resposta simples ou única. As coisas estão mais visíveis agora, todas elas, e isso pode ser positivo também. Há uma falência geral dos órgãos, o Brasil está um pesadelo. Acho que o trabalho a fazer é exatamente o que estamos fazendo. Espetáculos como este, dissidências, disputa de narrativas. Acender o debate e incomodar e desafiar essa ordem estabelecida, que é insustentável.

Fonte: Revista Fórum