saudades

Daniella Perez, 25 anos: o dia em que o noticiário superou a novela

O único caso que se aproximou do de Daniella no impacto da notícia para o público foi a morte de Domingos Montagner, em setembro de 2016, por afogamento no Rio São Francisco, cenário de “Velho Chico”, onde ele era protagonista

No 29 de dezembro que vem aí, completam-se 25 anos de uma daquelas ocasiões em que a gente se lembra perfeitamente onde
estava e como recebeu determinada notícia. Eu ainda dormia na casa de papai e mamãe quando dona Guiomar veio me despertar:

_ Não vai trabalhar? Dona Zenaide ligou aqui agora pra perguntar se é verdade que mataram a Yasmin.
_ Que Yasmin? A lha
da Luíza Brunet?
_ Não, a da novela. E parece que quem matou foi o Bira.
_ Esse povo é louco, imagina!, respondi. Só se vai matar na novela.

Mas logo pensei: Yasmin é personagem da Daniella Perez, filha da autora, Glória Perez. Por que a mãe mataria a própria filha na novela? Não havia lógica. Bocejei, esfreguei os olhos e, sem botar fé no que poderia ser fofoca de gente doida, estiquei o braço para o botão do imenso rádio ao lado da cama, um rack com toca-discos, dial, toca-fitas e vinis acomodados na parte de baixo.

Paro numa estação e ouço: “O presidente Fernando Collor acaba de renunciar à presidência da República”. Era o Collor fugindo da sentença do impeachment. “Jesus!”, penso, “o dia promete”. Giro para outra estação e ouço que houve um incêndio na sede do jornal “O Dia”, no Rio. Nem tentei chegar ao caso Daniella. Banho e pé na rua, logo alcançava o 2º andar da Alameda Barão de Limeira, 425, onde o noticiário sobre TV já era da minha conta, na extinta “Folha da Tarde”, então sob o comando de Júnia Nogueira de Sá.

Poucos dias antes, ainda no início daquele dezembro, entrevistei Daniella pessoalmente na Tycoon, na ainda quase deserta Barra da Tijuca, no Rio, onde a Globo acomodava parte das gravações de suas séries e novelas. O espaço na sede do Jardim Botânico era exíguo e o Projac ainda estava em franco processo de construção.

Na Tycon era gravada a novela “De Corpo e Alma”, onde Yasmin fazia par com Bira, personagem do estreante Guilherme de Pádua, ex-dançarino da boate Alasca (que, a despeito do nome, reinava a alguns quilômetros dali, em Copacanaba).

Sempre que ia ao Rio, procurava trazer um pacote de entrevistas para abastecer nosso noticiário diário de TV. Falei com vários atores da novela, mas Daniella estava me dando um chá de cadeira. Não foi grossa, não foi antipática, mas mostrava preguiça em falar com uma repórter naquele momento, um direito dela. Primeiro pediu que a procurasse dali a meia hora. Depois disse que precisava fazer maquiagem. Telefonei para a minha editora, Edianez Parente, a Edi, da sala de atores.
_ Edi, z
meia-dúzia de entrevistas. Será que precisamos mesmo de Daniella Perez? Ela não está nem um pouco afim
de falar e já está escurecendo, preciso sair desse fim de mundo logo.
_ Ah, insiste mais um pouco. Acho que vale a pena, ela está fazendo sucesso, é a mocinha da história, tem a relação com a mãe, ao mesmo tempo autora, acho que pode render. Ok. Insisti.

Daniella, 22 anos, enfim falou com a repórter, profissional da mesma idade que ela, ambas se sustentando na impaciência da juventude: a repórter, àquela altura exausta, investindo em questões muito clichês, e ela respondendo evasivamente às minhas perguntas tolinhas.

Na época, não existia esse negócio de assessoria de imprensa para acompanhar tudo. A Comunicação da Globo era bem mais enxuta e procurava atender aos pedidos da imprensa por informações e fotos, mas entrevistas eram basicamente batalhadas diretamente com os alvos desejados, o que nos dava total meritocracia sobre as conquistas. Hoje, o departamento procura ter controle sobre quem dá entrevistas e a quem dá, elegendo os veículos que lhes interessam para vender o peixe prioritariamente aos maiores, sempre escoltando seus entrevistados, independentemente da competência do profissional.
Acesso ao set, então, como eu fazia na época, é algo hoje absolutamente controlado. Sem autorização e acompanhamento, jornalista não pisa no estúdio ou em locação.

Voltando à minha entrevistada, a conversa foi fraca, insípida, inodora. Não rendeu. A moça só me falou sobre planos futuros para montar um espetáculo com o marido, Raul Gazolla, não me deu as respostas incríveis que eu esperava e a matéria, que seria guardada para ocupar espaço bom nos dias de marasmo do fim de ano, acabou publicada em versão bastante modesta, no dia 22 de dezembro.

Seis dias depois, dei de cara com a notícia do assassinato e a respiração ofegante me tomou pelo dia todo, na missão de retomar da gravação da entrevista e reproduzi-la na íntegra para a edição do dia 30. Os projetos da atriz e bailarina, assunto tão tolinho para uma entrevista normal e reduzidos a poucas linhas na primeira publicação, ganharam relevância diante das novas circunstâncias.

Quais eram os sonhos da mocinha da novela das 9, agora impedidos pela morte precoce provocada pelo par da ficção? A “Folha da Tarde” e a “Folha de S.Paulo” contavam o que ela projetava para os meses seguintes, anunciando como “A última entrevista”. Mas e se alguém tivesse falado com ela depois de mim? Como bancar essa chamada? Optamos por “A última entrevista publicada na imprensa paulista”, o que já reduz muito o impacto, mas é de uma honestidade incontestável (e impensável para os cobiçados cliques da internet atualmente).
Fizemos bem. O jornal “O Estado de S.Paulo”, que havia realizado entrevista com ela ainda no dia 22 e a mantinha inédita, cravou na capa “A Última entrevista”. A conversa estamparia a capa do “Telejornal” (suplemento de TV do “Estadão” que eu teria o prazer de editar, 10 anos depois). E em janeiro dr 93 teve mais uma “última entrevista” com Daniella, dessa vez pela revista “Interview”, extinta poucos anos depois.

No capítulo gravado poucas horas antes do crime, Yasmin terminava o namoro com Bira. O ator estaria irritado com a possível perda de espaço na trama. Gilberto Braga e Leonor Basséres assumiram a história pelos sete dias seguintes ao assassinato e inventaram uma viagem de Yasmin ao exterior. Bira simplesmente sumiu. Ao reassumir a trama, Glória aproveitou para levantar outra bandeira na história, cujo mote central era transplante de coração: a morosidade da justiça e a adequação do Código Penal. Ao longos dos anos, a autora tem batalhado por mudanças na lei e se envolvido diretamente no debate de casos de homicídio, principalmente com mães que perdem dos filhos
assassinados.

Pádua, que matou minha contemporânea a golpes de tesoura, com sua mulher, Paula Thomaz, rendeu a atriz em um posto de gasolina próximo da Tycoon, onde ela parou para abastecer. Na madrugada, chegou a consolar a mãe da vítima, já como suspeito (condição a princípio descartada por colegas e equipe), mas ainda não confirmado
como tal. Condenado a 19 anos e 6 meses de prisão, ficou apenas 6 anos atrás das grades e em 99 já estava livre.

As consequências

O episódio mais trágico da história da telenovela brasileira resultou em algumas medidas. Por muito tempo, a direção da Globo vetou a presença de filhos de autores e diretores nas respectivas novelas criadas por eles. O caso de Daniella tinha precedentes. Cássio e Tato Gabus normalmente trabalhavam nas novelas do pai, Cassiano Gabus Mendes. Júlia Almeida, filha de Manoel Carlos, também fazia as tramas do pai.

Como toda norma, essa foi perdendo força com o passar dos anos e hoje já não é questão proibida. Mas a consequência mais sólida do caso diz respeito à maneira como os novos atores são ungidos a essa vitrine chamada Rede Globo – na época, sem internet e TV paga, a hegemonia da emissora em tornar pessoas famosas era infinitamente maior. Pádua, visto no show dos Leopardos na Galeria Alaska, ponto de shows de strip tease de garotos, era pouco conhecido quando chegou à Globo. Mesmo assim, ganhou, de cara, papel de destaque na principal novela da casa. Passaram a ter cuidados extras para colocar
novos “talentos” em cena, com acompanhamento psicológico entre novatos de holofotes.

O único caso que se aproximou do de Daniella no impacto da notícia para o público foi a morte de Domingos Montagner, em setembro de 2016, por afogamento no Rio São Francisco, cenário de “Velho Chico”, onde ele era protagonista. Embora o choque tenha sido grande, o agente da morte de Domingos foi o rio, e não alguém com quem ele contracenava, como aconteceu com a filha de Glória.

 

Fonte: Folha de São Paulo
Créditos: Tele Padi