Nele, minhas colegas Amanda Audi e Nayara Felizardo argumentam que a cantora Marília Mendonça, por não se importar de ser chamada de “gordinha”, não tentar se encaixar em padrões e cantar sobre liberdade das mulheres, é uma espécie de feminista em negação, com um discurso muito mais eficaz do que o de quem se diz abertamente feminista. “E daí que elas não levantam a bandeira? Marília e suas amigas do feminejo são feministas sem dizer que são”, escrevem. “Quem se identifica com os valores propagados pelo feminejo também provavelmente se identifica com os valores do movimento feminista – só não sabe disso ainda.”

São afirmações simplistas e ingênuas. Marília se recusa a se identificar como feminista, porque de fato não é. O erro da “esquerda lacradora” não é, como sustenta o texto, condenar a cantora por ser feminista e não usar o termo. É colar o rótulo de feminista em qualquer celebridade que fale das questões de menor impacto coletivo do movimento, como direito à expressão da sexualidade, aceitação do próprio corpo ou união feminina – mesmo quando a celebridade recusa o rótulo. E, depois, se chocar com as falas antifeministas dessas mesmas pessoas, como se elas estivessem traindo um movimento de que nunca fizeram parte.

Foi o que aconteceu quando a cantora de feminejo Naiara Azevedo, que já havia negado ser feminista, afirmou que “o homem é cabeça, o chefe da casa”. Um internauta, irritado, comentou: “Depois vem com música de corna pra vender”.

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Imagem: Reprodução/Twitter

É verdade que, numa sociedade em que um bocado de homem ainda se acha no direito de dizer o que a namorada pode ou não vestir ou fazer, não é coisa pouca ouvir uma mulher cantar “Tá pra nascer quem manda em mim” e ver a música cair no gosto popular. Mas concordar com essa letra não te torna feminista. Para isso, é preciso ir além da ideia de libertação individual.

Concordo que cantoras como Marília, Simara, Simaria e Naiara Azevedo “conseguem falar sobre empoderamento de mulheres – jargão esquerdista detectado – sem nunca dizer que estão falando disso” e, assim, conseguiram espalhar essa mensagem pra uma multidão que textos como os nossos não vão atingir. Da mesma forma, acredito que a definição de feminismo proposta em “Como ser mulher” é incrível para garotas entenderem se feminismo tem mesmo a ver com ódio aos homens ou à depilação. Spoiler:

Mas a afirmação de Caitlin Moran é só isso: uma porta de entrada amigável para um universo encoberto por mitos e estigmas. Resumir o feminismo a “querer ser dona da sua buceta”, além de excluir as mulheres trans, é reduzir um movimento político de mais de 130 anos a uma mera noção individualista de “empoderamento”.

À Folha de S.Paulo, ela [Marília Mendonça] falou que seu feminismo não é feito de teoria, textos ou protestos. “Protesto com minha vida, ao bancar tudo isso e falar que ia ser do jeito que sou e que ia conseguir o que consegui”.

É importante que mulheres sejam financeira e emocionalmente independentes? Com certeza. Mas, considerando que esse estilo de vida é completamente inacessível para a maior parte das mulheres, nem contribui para que se torne acessível, não traz bem coletivo nenhum. E já dizia a poeta e feminista negra Audre Lorde: “Eu não serei livre enquanto houver mulheres que não são, mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas.” Feminismo é sobre isso.

Vejam: o “empoderamento” individual ainda não representou uma mudança concreta na violência doméstica e sexual que as mulheres sofrem enquanto grupo (apesar da “moda” do feminismo de mercado, uma mulher ainda é agredida a cada 15 minutos no Rio de Janeiro e o Brasil tem a 5ª maior taxa de feminicídios do mundo); não nos livra de ter os empregos e subempregos menos valorizados; não põe fim à tripla jornada de trabalho; nem, no caso das mulheres negras, faz com que elas deixem de viver em condições mais precárias do que todo o resto da população.

Essas são questões que não se resolvem quando decidimos que queremos ser donas das próprias bucetas ou afirmamos que ninguém manda em nós.

São problemas sociais e políticos complexos que só podem ser enfrentados com luta política contínua, dentro e fora das instituições de poder. É isso que o feminismo representa: um movimento antissistêmico. Ou, pelo menos, é o que deveria representar.

O feminismo de mercadoria

Em 2015, as brasileiras tomaram as ruas e as redes em um movimento batizado de Primavera das Mulheres. O projeto de lei que pretendia dificultar o aborto em casos de estupro; o assédio da menina Valentina no Masterchef Brasil, que levou à criação da hashtag #PrimeiroAssédio; e a campanha #MeuAmigoSecreto, que revelou casos de machismo cotidiano, foram alguns dos elementos que fizeram o feminismo explodir no Brasil.

Buscas no Brasil pela palavra feminismo no Google entre 2011 e 2018. Em vermelho: agosto de 2012, data do lançamento de "Como ser mulher"; outubro de 2015, a Primavera das Mulheres; e setembro de 2018, o auge do interesse pelo movimento.

Buscas no Brasil pela palavra feminismo no Google entre 2011 e 2018. Em vermelho: agosto de 2012, data do lançamento de “Como ser mulher”; outubro de 2015, a Primavera das Mulheres; e setembro de 2018, o auge do interesse pelo movimento.

Gráfico: Reprodução/Google Trends

Essa primavera fez surgir novos grupos feministas, fortaleceu os já existentes e impulsionou a produção de conteúdo de linguagem acessível sobre o feminismo na tela e no papel. De três anos para cá, as livrarias foram inundadas de títulos sobre feminismo. A popularização do termo levou o próprio livro de Moran, lançado em 2012 com o subtítulo Um divertido manifesto feminino, sair em nova reimpressão para virar manifesto feminista.

Com o aumento do interesse pelo tema no Brasil e no mundo, não demorou para o mercado se dar conta de que o feminismo poderia ser lucrativo. Em 2014, a revista de moda Elle, a marca Whistles e a Fawcett Foundation lançaram uma camiseta com os dizeres “This is what a feminist looks like” [É assim que uma feminista se parece], usada por várias celebridades e vendida a cerca de US$ 70 para levantar dinheiro para caridade. O único problema? As peças eram produzidas por mulheres das Ilhas Maurício, no Oceano Índico, em condições análogas à escravidão. É assim mesmo que uma feminista deve se parecer?

Em março de 2017, dois meses depois de a busca por feminismo no Google atingir seu ápice nos Estados Unidos, a grife francesa Dior lançou a camiseta “We should all be feminists” [Sejamos todos feministas], em referência ao discurso de mesmo título da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. O preço? Módicos US$ 710, ou R$ 2.200, no câmbio da época.

Mas a venda de produtos com referências diretas ao feminismo não é a questão mais preocupante. A real armadilha está no uso do discurso de “empoderamento” para vender basicamente qualquer coisa. Em 2015, a Bombril reuniu Ivete Sangalo, Monica Iozzi e Dani Calabresa para dar às mulheres um recado: “Toda mulher é uma diva! E todo homem é devagar. Isso! Divou! Bombril: os produtos que brilham como toda mulher.” Olhem só, o acúmulo de tarefas domésticas pelas mulheres não é um problema, fruto do machismo, a ser resolvido. É prova do quanto elas são mais poderosas que o homens!

Marília Mendonça e as demais artistas do feminejo podem cantar sobre mulheres empoderadas e dizer que sua forma de protestar pela causa feminina é ganhando dinheiro, como se isso bastasse para mudar alguma coisa fora de suas vidas pessoais. Essas vendas do “empoderamento” como protesto e feminismo matam dois coelhos numa tacada só. Primeiro, transformam em fonte de lucro um movimento ligado à contestação do capitalismo – sim, porque um feminismo que não olha para as desigualdades de classe é um feminismo incapaz de transformar a vida da maior parte das mulheres. E, ao transformá-lo em mercadoria, passam à frente a ideia de que “mulheres podem ser feministas sem desafiar a si mesmas ou à cultura”, como critica a escritora bell hooks em seu livro “O feminismo é para todo mundo”.

Como assim? Bom, se você já entende que feminismo é a luta pela igualdade entre homens e mulheres, já deu o primeiro passo. Mas você está disposta a repensar e mudar seu comportamento para que o seu feminismo abarque mulheres socialmente mais vulneráveis do que você? Está disposta a ouvi-las? Essas são questões que o feminismo de boutique não vai levantar.

Incapaz de mudar as estruturas de poder, o feminismo de mercado é mais fácil de engolir do que o verdadeiro feminismo, enxergado como “radical” frente à falsa e inofensiva imagem vendida pelo mercado. E é ele que permite que cantoras como Marília Mendonça possam se passar por feministas aos olhos de parte da esquerda. Mas, no melhor dos cenários, tudo que esse feminismo faz é o que conseguem as músicas de Mendonça: ajudar as mulheres a se sentirem donas do próprio nariz. Não é pouco, mas, politicamente falando, elas ainda não são livres. Esse feminismo para por aí.

Explodam a bolha

Estamos vivendo um paradoxo. Por um lado, parece que a discussão sobre feminismo está em todo lugar: no Programa da Fátima, nas séries, nos livros, nas eleições… mas essa explosão feminista não é tão abrangente quanto as longas discussões e tretas online sobre assuntos como “lugar de fala” poderiam levar as militantes – entre as quais me incluo – a acreditar. Uma pesquisa da revista Cláudia divulgada em março de 2018 revelou que menos de um terço das brasileiras se identifica com o movimento feminista.

Levando esse número e o resultado da última eleição em conta, não há como discordar de um ponto central levantado pelo texto de minhas colegas Amanda e Nayara. É preciso que nós, mulheres feministas, aprendamos a comunicar nossas pautas de forma mais eficiente, abrindo mão de “expressões que pouco ou nada dizem para a maioria das pessoas fora da bolha”.

Sim, a definição de feminismo de Caitlin Moran me faria suspirar de frustração hoje em dia. Mas se “Como ser mulher” me dissesse que o feminismo é uma luta política e cultural que pretende derrubar o sistema patriarcal, imperialista, racista e heteronormativo que subjuga a todas as mulheres, mas em especial as mais pobres, LBT e não-brancas, a Bruna de 17 anos teria dado uma de Cabo Daciolo e corrido para as montanhas.

Convenhamos que a imagem que o senso comum pinta do feminismo, além de irreal, é bem desagradável – um movimento de mulheres raivosas, que odeiam homens, nunca se depilam (o que aparentemente seria um grande problema) e gostam de sair por aí profanando igrejas. Então, quem não conhece o movimento costuma vê-lo de forma negativa ou, pelo menos, com alguma suspeita. E, ao ser atropelada por um monte de jargão, a probabilidade de essa pessoa aderir a um “Não sou feminista nem machista, sou ser humano” e seguir a vida é muito maior do que a de pesquisar o que os jargões significam.

Alguns coletivos de mulheres já adaptam o discurso quando abordam temas feministas em eventos nas periferias ou nas escolas. Elas falam em movimento de mulheres em vez de dizer feminismo, por exemplo. Isso ajuda a romper a resistência das ouvintes e facilita a transmissão da mensagem.

O grupo Minas da Baixada, por exemplo, se define no Facebook como um “coletivo feminista interseccional, formado por mulheres da Baixada [Fluminense do Rio de Janeiro] e aberto a mulheres que desejem atuar na luta feminista na região”. Mas, ao participarem de atividades em escolas públicas e de rodas de conversas com mulheres, as integrantes evitam usar termos como “questão de gênero” e “patriarcado”. Com estudantes, fazem dinâmicas, como perguntar o que eles já haviam deixado de fazer por serem meninos ou meninas. Assim, eles mesmos refletem e chegam à conclusão de que o machismo atua em suas vidas. Com as adultas, o discurso também é adaptado, e a estratégia é abrir um espaço de escuta para que, a partir das falas das mulheres, possam ser trabalhados temas como racismo, machismo e desigualdade de classe.

O desapego dos chavões e, como falou a escritora Gabriela Moura nessa entrevista, a habilidade de adaptar nossas falas a diferentes públicos são essenciais para que mais mulheres conheçam o feminismo. E, com o tempo, poderem entendê-lo como um movimento complexo, plural e antissistema, e não como empoderamento à venda na loja de maquiagemda esquina. Passinhos de formiga, gente.

E não basta adaptar a linguagem. É preciso, como escreveu minha colega Juliana Gonçalves no Twitter, que a discussão sobre o feminismo se dê fora dos espaços privilegiados, chegando às mulheres periféricas.

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Imagens: Reprodução/Twitter

Temos que parar de pregar para os convertidos. Todo evento que se propõe a debater o feminismo e suas pautas, mas é realizado numa área nobre e inacessível da cidade e só tem (ou tem desproporcionalmente) gente branca, de classe média ou alta que já sabe de tudo que é dito, é um evento feminista que falhou miseravelmente. Ponto. Não passa de um exercício de masturbação mental, em que todos terminam como começaram: alheios ao fato de que as horas gastas não contribuíram em nada para a sociedade e satisfeitos com o doce gostinho de terem suas convicções reafirmadas.

Já é hora de esse gostinho começar a ser amargo. Afinal, que explosão feminista é essa, sequer capaz de explodir nossas bolhas?

Nem tudo é derrota

Sim, o antifeminismo ganhou a luta de narrativas nessas eleições. E, sim, isso é prova de que precisamos repensar nossas estratégias de diálogo. Mas os ataques ao movimento e às feministas não teriam a ferocidade que tiveram se não estivéssemos fazendo algo certo.

Nós conseguimos colocar o feminismo no centro do debate e, com isso, vieram as pedras. Em seu texto sobre o feminejo, minhas colegas escrevem que Bolsonaro empregou a estratégia de dividir as mulheres entre “as que o apoiam e rejeitam o feminismo; e as femininas”. Uma de suas aliadas nos chamou de “vexaminosas e deselegantes”. Eduardo, o filho caçula, diz que “mulher que se dá o respeito” não é feminista.

Já era de se esperar. Do final do século 19, passando pelas décadas de 1960 e 1980 e, agora, de 2010, a campanha antifeminista continua recorrendo às mesmas jogadas. Somos feias, sujas, mal humoradas, putas ou mal amadas – e não é a adaptação do nosso discurso que vai dar fim a essa cruzada centenária. O que incomoda pessoas como os Bolsonaro não é nosso vocabulário, mas a possibilidade de mudança que nossas palavras representam.

Não devemos adaptar nosso discurso para fugir dos ataques, mas para mostrar o quanto são ultrapassados e mentirosos. O interesse pelo feminismo nesta década nunca foi maior do que em 2018. E, se essa década marca a quarta onda feminista, a curiosidade sobre o movimento é hoje a maior desde pelo menos a onda anterior, nos anos 1990. Se houve um momento para fazer o feminismo realmente explodir, é esse – e não podemos desperdiçá-lo. Então, sim, vamos aprender com a linguagem do feminejo e sua habilidade de se comunicar com as mulheres. Mas não vamos confundi-lo com feminismo. Quanto às pedras, que venham. Não é nada com que não estejamos acostumadas.