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"Brasil todo é obrigado a escutar e aplaudir um único gênero", diz Emicida sobre sertanejo

O rapper Emicida (Foto: Divulgação)

Emicida pode ser mais famoso por rimas de amor e os versos “good vibe” de “Passarinhos”, mas há um tom de rebeldia que nunca sai de seu discurso, que continua afiado em seu mais recente projeto, o Língua Franca. Trata-se de um quarteto completado por Rael e mais os portugueses Capicua e Valete (ouça “Ela”, a primeira música do Língua Franca).

Um dos principais expoentes do rap com levada pop – e um dos poucos que conseguem levar o gênero às listas de mais ouvidas -, ele critica a indústria na qual está inserido, uma fábrica de “mais do mesmo”:

“Há a música enquanto arte e enquanto indústria. A indústria é extremamente restrita, exclui muito da produção cultural do Brasil e faz com que a diversidade de um país como o nosso vá pelo ralo.”

A consequência disso, diz ele, é o que rádios e streaming estão quase dominados pelo sertanejo. “Acho contraditório que a gente tenha trilhado um caminho com Jair Rodrigues, Elis, Tom, Pixinguinha, Pena Branca e Xavantinho, Racionais, Caetano, Gil, Tom Zé… e, de repente, chega um momento em que o Brasil inteiro é obrigado a escutar e aplaudir um único gênero”, avalia.

Qual o papel dos artistas para vencer esse monopólio? “Pressionar o mainstream, para que a diversidade exista dentro do universo das FMs e a arte brasileira seja conhecida pela pluralidade”.

Emicida e a rapper Karol Conka (Foto: Reprodução/Facebook/Emicida)Emicida e a rapper Karol Conka (Foto: Reprodução/Facebook/Emicida)

Emicida e a rapper Karol Conka (Foto: Reprodução/Facebook/Emicida)

Além das quebradas

Com seu próprio selo musical, o Laboratório Fantasma (que também é coletivo cultural), ele pressiona o mainstream de dentro. Emicida faz parte de uma geração de cantores, na qual também estão nomes como Criolo, Rael, Projota e Karol Conka, que conseguiram levar o rap para muito além das quebradas.

Algumas letras açucaradas ajudaram, mas o cantor lembra que elas não são novidade no gênero.

“Um dos grupos de rap mais famosos do Brasil, o Sampa Crew, só fazia música de amor. A discografia inteira dos Racionais é composta em cima de músicas românticas. A gente se influenciou muito na temática desses caras.”

Ele continua: “A nossa geração veio depois dos bailes de rua, então esses bailes meio que migraram para dentro das nossas casas. Nossos pais escutavam os discos que os Racionais sampleavam. Isso fez a gente ter uma conexão instantânea com as músicas românticas”. Para o músico, a liberdade temática reflete o que ele sempre viu na rua.

“Penso que tem uma diversidade bonita na rua e a gente transfere isso para a música. Cresci num bairro em que a molecada escutava grunge, reggae… A gente cresceu nos ensaios das escolas de samba, dos grupos de pagode. E aí chegou a música americana e a gente se identificou”, conta. “Acho muito honesto que, dentro da nossa música, haja uma grande mistura de tudo que sempre foi nosso universo.”

“O hip hop sempre se alimentou de outros elementos culturais, mas, por algum motivo, em algum momento, ficou estereotipado como uma cultura que se retroalimenta e não se conecta com as outras.”

Mallu Magalhães em clipe de Mallu Magalhães em clipe de

Mallu Magalhães em clipe de “Você nao presta”, criticado na internet (Foto: Reprodução)

Apropriação cultural

Na parte mais engajada do repertório, racismo e desigualdade são os temas preferidos do rapper. E, falando em racismo, ele comenta uma polêmica recente envolvendo o novo clipe de Mallu Magalhães, criticado na internet por mostrar dançarinos negros com o corpo exposto. “As pessoas precisam permitir que os corpos pretos sejam livres. Se a gente tivesse um corpo de baile branco ali, e os bailarinos pretos desempregados, iríamos levantar esse questionamento?”, opina. E acrescenta:

“Acho que há uma mania, às vezes, de salvar quem não está pedindo socorro. Você se coloca numa posição de dizer: ‘Esses bailarinos são ignorantes, não gostam de ser pretos, são cegos para sua autoestima’. Uma terceira pessoa está dizendo para eles que eles estão sendo usados.”

“A gente tem problemas mais sérios do que esse. Entendo que isso é o que dá uns ‘likes’ na internet. Mas eu não tenho vontade nenhuma de participar da discussão”, continua.

No auge do debate sobre apropriação cultural, o cantor avalia que a questão ganha contornos bem diferentes quando o assunto é arte.. “Como criador, eu me aproprio de várias culturas. Não quero que ninguém venha me dizer que eu não tenho direito de usar um nome japonês na minha coleção de moda.”

Desfile da grife LAB na São Paulo Fashion Week 2016 (Foto: Reprodução/Facebook/Laboratório Fantasma)Desfile da grife LAB na São Paulo Fashion Week 2016 (Foto: Reprodução/Facebook/Laboratório Fantasma)

Desfile da grife LAB na São Paulo Fashion Week 2016 (Foto: Reprodução/Facebook/Laboratório Fantasma)

Moda é política

Ao falar de moda, Emicida se refere ao braço fashionista do Laboratório Fantasma, a grife LAB, que teve um dos desfiles mais comentados da São Paulo Fashion Week no ano passado, com um elenco diverso de modelos e participações de Seu Jorge e do próprio rapper. Ele acredita ser função da marca levar mais diversidade às passarelas:

“Eu sempre entendi a moda como algo político, a criação de um símbolo muito forte de beleza, que sai do imaginário padrão, da menina loira e magra na passarela.”

O cantor diz considerar um “desperdício gigantesco” a moda tradicional, sem pluralidade. E, como na música, trabalha para mudar o mercado estando dentro dele. “A criatividade, a intelectualidade, a beleza, a capacidade, o preparo não são características exclusivas de quem nasceu numa condição econômica melhor e com pele clara. Tudo isso diz muito sobre oportunidades. Precisamos expandir esse campo.”

Fonte: Terra