Deus me livre, mas quem me dera?

PROFISSÃO PRESIDENTE: Ao mesmo tempo, cargo acumula poder e sentimento de impotência; ocupante está próximo do paraíso e do inferno

Profissão: presidente Ao mesmo tempo, cargo acumula poder e sentimento de impotência; ocupante está próximo do paraíso e do inferno...

Por JOSIAS DE SOUZA

Nenhuma outra instituição é tão paradoxal quanto a Presidência da República. Disputado neste domingo (28) por Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), o emprego de presidente é uma honraria traiçoeira. Seu ocupante está tão próximo do paraíso quanto do inferno. Num instante, é admirado. Noutro, é execrado. Ora exibe poderes imperiais, ora descobre que o pior tipo de ilusão que pode acometer um presidente é a ilusão de que preside.

Um dos governantes mais bem-sucedidos da ditadura militar, período cultuado por Bolsonaro, o general Ernesto Geisel disse em sua única entrevista a jornalistas brasileiros, num vagão de trem, durante viagem ao Japão: “A Presidência é um fardo terrível”.

Maestro do Plano Real, um feito do Brasil redemocratizado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que resistiu ao flerte para apoiar Haddad neste segundo turno, registrou no diário eletrônico que converteu em livro: “A Presidência é doída”.

O senso comum convive com a ideia de que o presidente dirige os rumos do país nesta ou naquela direção. Trata-se de um dos mais persistentes enganos da mitologia política.

No primeiro dos quatro volumes de sua obra “Diários da Presidência”, FHC explicou que o presidente exerce um papel “simbólico e integrador” que o transforma num “rei provisório.” Mas o grão-tucano esclareceu já na apresentação do livro que, por vezes, quem reina é a impotência.

“A efetividade desse suposto superpoder é muito relativa”, escreveu. “Quanto mais complexa a sociedade, menos capacidade de decidir e de tornar efetiva a decisão têm os presidentes, apesar de ser indubitável que contam com muita força dissuasória e de comando.”

Mesmo a alegada “força dissuasória e de comando” não é tão “indubitável” quanto FHC tenta fazer crer. Sob Michel Temer, por exemplo, o presidente foi, por assim dizer, presidido durante mais de dez dias por uma greve de caminhoneiros. O movimento paralisou o país. Alegou-se que Temer não dispunha de boa informação para agir preventivamente. Meia verdade.

O Planalto havia ignorado alertas enviados por entidades da categoria. E os órgãos de informação do governo não foram capazes de farejar uma paralisação com cheiro de locaute, cujas assembleias ocorreram em grupos de WhatsApp. Como 64% da carga nacional cruza o mapa do país na carroceria de caminhões, bastou secar as bombas de combustível para produzir um estrago monumental.

Além dos reflexos econômicos, a greve de caminhoneiros escancarou um flagelo político: o poder efetivo de um presidente não vai muito além dos limites dos quatro andares do prédio do Palácio do Planalto e de um grupo de pessoas lotadas em repartições estratégicas. Para além desse horizonte, o comando presidencial se dissipa na máquina estatal. E concorre com a influência de agentes e fatores cuja escala ultrapassa a duração dos mandatos.

FHC relacionou em seu livro alguns dos atores que se movem à revelia do controle de um presidente. “No sistema democrático, tanto o Legislativo, onde os partidos se aninham, como os tribunais e o que em espanhol se costuma chamar de ‘os poderes fáticos’ —isto é, permanentes, dos empresários, dos sindicatos, enfim dos donos do poder formalmente não políticos— restringem a ação presidencial.”

Marcada para 1º de janeiro de 2019, a nova passagem da faixa presidencial será a 11ª tentativa do Brasil de se reinventar, de recomeçar do zero, em quase seis décadas de história republicana. Em cada tentativa de renascimento há o enredo de um presidente que vestiu no peito o “fardo” da faixasem suspeitar que um pedaço de pano verde-amarelo pudesse conduzir a uma experiência “doída”.

Seria exagero afirmar que nada de proveitoso resultou dos momentos em que os presidentes se depararam com o que Carlos Drummond de Andrade chamaria de “pedra no caminho.”

FHC, por exemplo, conheceu o seu declínio depois do êxito do Plano Real. Encaminhada a solução para a guerra contra a inflação, sobreveio a demanda por serviços públicos aceitáveis. E a exigência de governos moralmente sustentáveis.

Mas o acúmulo de recomeços também produziu frustrações. Por exemplo: a corrupção está em cartaz desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. Decorridos 57 anos, encontra-se no centro da ribalta eleitoral uma operação policial chamada Lava Jato.

Vão listadas abaixo as dez tentativas de recomeço que trincaram a sociedade e ajudaram a converter as urnas de 2018 num processo de ruptura das ruas com um sistema político em franco processo de autocombustão.

1) Jânio Quadros e a vassoura que ele prometera utilizar para varrer a corrupção terminaram em renúncia;

2) O plebiscito que restaurou o presidencialismo com João Goulart, o vice que assumira graças ao arranjo do parlamentarismo, acabou em deposição;

3) O golpe militar de 1964, que foi o desejo de mudança de muita gente, resultou em duas décadas de ditadura;

4) A mobilização épica pelas ‘Diretas Já’ atolou no Congresso. Frustraram-se a sociedade, que teve de adiar o direito ao voto, e o último general-presidente, João Figueiredo, cujo epílogo foi uma declaração patética. Instado pelo repórter Alexandre Garcia a dirigir algumas palavras ao “povão” numa entrevista de despedida, o general declarou: “…O povão que poderá me escutar será talvez os 70% de brasileiros que estão apoiando o Tancredo. Então, desejo que eles tenham razão, que o doutor Tancredo consiga fazer um bom governo para eles. E que me esqueçam”;

5) Tancredo Neves chegou ao Planalto morto. Seu triunfo decolou do colégio eleitoral para o leito hospitalar. E fez baldeação no velório palaciano antes de aterrissar na sepultura. Deixou como heranças o vice José Sarney, egresso da ditadura. Na gestão Sarney, a restauração democrática confundiu-se com a anarquia econômica e administrativa deixada pelos generais;

6) Fernando Collor, primeiro presidente eleito pelo voto direto após a redemocratização, foi escorraçado pelo impeachment;

7) Fernando Henrique Cardoso aproveitou o interlúdio representado por Itamar Franco para encaminhar, como ministro da Fazenda, a resolução do problema do combate à inflação. Como presidente, após consolidar a mudança do regime monetário introduzida pelo Plano Real, foi emparedado pelas precariedades nacionais que eram obscurecidas pela inflação: saúde, educação, segurança… Somada aos escândalos (quebra dos bancos Econômico, Nacional e Bamerindus, caso Sivam, Sudam, Pasta Rosa, compra de votos da reeleição…), a Presidência pluritemática desaguou numa impopularidade que mantém o tucanato longe do poder há 16 anos. O jejum acaba de ser renovado por mais quatro anos;

8) Lula tornou-se um caso único de presidente que sofreu emboscadas da Presidência quando já estava fora dela. Seu estilo de governar, firmando alianças tóxicas financiadas à base de mensalões e petrolões, se revelaria uma rendição à oligarquia empresarial. Deixou o Planalto enfiando o dedo no favo de mel de uma taxa de popularidade de mais de 80%. Lambendo o dedo, elegeu a sucessora duas vezes. Hoje, tenta em vão fugir das abelhas. Conta as ferroadas na cadeia;

9) Dilma Rousseff, vendida por seu criador como supergerente, revelou-se uma espécie de conto do vigário no qual o próprio Lula caiu. Entre 2013 e 2016, a economia brasileira encolheu 6,8%. O desemprego saltou de 6,4% para 11,2%. Foram ao olho da rua algo como 12 milhões de pessoas. A Lava Jato demonstrou que o único empreendimento que prosperava no Brasil era a corrupção. Se Lula passou à histórica como presidente que fez a sucessora, Dilma imortalizou-se como a criatura que desfez a obra do criador;

10) Michel Temer, resultado do impeachment de Dilma, conseguiu a proeza de se tornar um ex-presidente em pleno exercício da Presidência. Sonhava em passar à história como presidente reformista. Depois do grampo do Jaburu, tudo virou epílogo no enredo do seu governo. Arrasta-se entre o Planalto e o Jaburu, deixando atrás de si o rastro pegajoso de duas denúncias por corrupção e dois inquéritos criminais. É atormentado pela síndrome do que está por vir depois que perder as imunidades de presidente.

Num instante em que a presença de uma chapa militar na liderança das pesquisas instila no cenário político a suspeita de que o Brasil flerta com o retrocesso democrático, o economista Antonio Delfim Netto, 90, faz uma avaliação peremptória:

As Forças Armadas jamais voltarão a administrar o Brasil. Digo isso como quem tem experiência nesse negócio

Delfim afirma que os militares têm uma razão adicional para tomar distância da política. Além do “compromisso inabalável com o regime democrático”, a farda não tomaria partido numa disputa que dividiu a sociedade em “duas tribos antropófagas, que ameaçam se comer.”

Há no Brasil uma tendência dos presidentes da República de recorrer a generais da reserva para ocupar cargos em pastas civis. Bolsonaro já sinalizou que, se vencer a eleição, deve exacerbar a prática.

Delfim vê vantagens onde outros enxergam problemas. Depois de passar para a reserva, um general não é senão um “ex-general”, apto a exercer funções públicas como qualquer cidadão.

Delfim conhece, por exemplo, o general Oswaldo Pereira, um dos “quatro estrelas” que integram a equipe que planeja as ações de um hipotético governo Bolsonaro. Responsável pelos programas da área de infraestrutura, Oswaldo está cotado para assumir um ministério a ser batizado com o mesmo nome. Delfim aplaude a escolha, pois, segundo diz, o general é um “especialista”. Com a vantagem de que não admitirá interferência política no setor.

Nenhum outro economista vivo desfrutou de tanta proximidade com o poder como Delfim NettoCzar da economia em diferentes períodos do regime militar, ele rubricou em 1968 o Ato Institucional número 5, que suspendeu o habeas corpus e fechou o Congresso. Vinte anos depois, como deputado Constituinte, eleito por São Paulo, assinou a Constituição que Ulysses Guimarães apelidou de cidadã.

Execrado pelo PT durante a ditadura, Delfim tornou-se um conselheiro econômico de Lula nos dois mandatos do petista na Presidência da República. Afirma que “Lula é a única alma democrática do PT”. Sustenta que o partido “parasita” seu grande líder, preso em Curitiba desde abril.

Lula é um animal político da melhor qualidade, muito maior do que o PT

Sondado para retornar à pasta da Fazenda sob Dilma Rousseff, Delfim refugou a oferta. A despeito disso, desfrutou de bom trânsito também com a criatura de Lula, a quem critica severamente.

“Com Dilma, o caldo entornou de vez. Crescemos 0,4%, em média, contra 3,6% do mundo. A partir de 2012, tivemos o pior quinquênio do século em matéria de crescimento. Do segundo trimestre de 2014 ao quarto trimestre de 2016, nosso PIB per capita caiu mais de 9%.”

Hoje, Michel Temer consulta Delfim amiúde. “O Temer começou a encaminhar as coisas na direção certa”, afirma, antes de recobrir a equipe econômica de elogios: “Nos últimos anos, não houve um time tão competente na Fazenda e no Banco Central. Por infelicidade enorme, o Temer teve um problema político insolúvel: a delação da JBS.”

Delfim acrescenta: “Se o candidato vencedor tiver um mínimo de inteligência, vai manter os técnicos da atual equipe econômica. Estamos na mão de gente muito competente. A maioria é servidor público, sem ideologia. Não há razão para deixar de aproveitá-los —na Fazenda, no Tesouro, no Banco Central.”

 

Delfim: Programa de Bolsonaro não existe; o de Haddad, sugere insensatez

Às voltas com um um PIB (Produto Interno Bruto) sedado, com 12,7 milhões de brasileiros no olho da rua e com uma crise fiscal que paralisa o Estado, o próximo presidente da República corre o risco de repetir um fenômeno que era comum até meados da década de 1990: a transferência de poderes do Palácio do Planalto para o prédio que abrigará a equipe econômica.

Um dos candidatos, Jair Bolsonaro, chega mesmo a informar que fundirá as pastas do Planejamento e da Fazenda num único ministério.

Titular da Fazenda de 1967 a 1974, tempos do chamado milagre econômico do regime militar, o economista Delfim Netto também esquentou a cadeira de ministro da Agricultura (1979), antes de ocupar o Planejamento de 1979 a 1985, fase do antimilagre.

Tomado pelos poderes que exerceu, Delfim esteve para os seus antigos chefes assim como o economista Paulo Guedes está para o capitão Bolsonaro: foi uma espécie de “Posto Ipiranga” dos generais.

Para que uma relação desse tipo dê certo, afirma Delfim, é preciso que o economista desfrute “da confiança absoluta do presidente.” Ele vaticina: Na hipótese de uma vitória de Bolsonaro, “se na primeira crise, no primeiro problema, você tiver uma desarrumação entre ele e o Paulo (Guedes), o sistema vai desandar.”

Na avaliação de Delfim, Bolsonaro e seu oponente, Fernando Haddad, igualam-se em matéria de “autoritarismo”. Ambos esgrimem programas econômicos “inconsistentes”. O de Haddad sugere uma insensatez: “Repetir o erro para ver se dá certo.” O de Bolsonaro não existe: “É um PowerPoint, um desenho animado, todo colorido. Não tem nada lá dentro.”

Não é inusual que candidatos escondam o jogo durante a campanha. Quanto maior o favoritismo, mais aguado se torna o programa de governo —sobretudo na área econômica, onde as correções de rumo pedem providências amargas.

Abertas as urnas, porém, o vencedor terá de levar à mesa um programa capaz de restaurar o vocábulo que alimenta as fornalhas da economia: confiança. Sem isso, não haverá superministro que evite a rápida conversão do eleito em minipresidente.

Fonte: Uol
Créditos: Uol