preconceito e insultos raciais

CASCA DE BANANA: Estudantes de Direito relatam racismo em jogos universitários; VEJA VÍDEO!

Estudantes que participaram da edição de 2018 dos Jogos Jurídicos Estaduais, no fim de semana, relataram episódios de racismo durante o evento. Segundo alunos ouvidos pelo GLOBO, atletas negros e torcedores da Uerj, da UFF e da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) foram ofendidos em três partidas de diferentes modalidades entre sábado e domingo por integrantes da torcida da PUC-Rio. Os Jogos Jurídicos reuniram em Petrópolis equipes esportivas e torcidas de faculdades de Direito do Estado do Rio de Janeiro.

Segundo os estudantes, um atleta negro teria sido atingido por uma casca de banana; um grupo de rapazes teria imitado macacos, com sons guturais; e outra estudante relatou ao GLOBO ter sido chamada de “macaco”. Este último caso foi relatado pelo colunista Ancelmo Gois em sua página, ainda nesta madrugada.

Os relatos dos dois lados diferem em pontos-chave, ainda que histórias de preconceito e insultos raciais há muito tempo pairem sobre esse tipo de evento universitário, em que estudantes de diferentes contextos e classes sociais se encontram num clima altamente competitivo. Nesta segunda-feira, foram determinadas uma série de punições para a equipe esportiva estudantil da PUC-Rio, e a própria instituição anunciou que formará uma comissão disciplinar sobre o caso.

CASCA DE BANANA CONTRA ALUNO

Segundo Raíza Uzeda, aluna de Direito da Uerj e membro do coletivo negro da faculdade, o primeiro incidente ocorreu no sábado, ao final de uma partida de futebol masculino entre os times da PUC e da UCP. Uma jovem que pertencia à torcida da PUC teria jogado uma casca de banana sobre um jogador da equipe adversária.

Entre alunos da PUC, no entanto, os relatos são de que este episódio não envolveu alunas da instituição, mas sim quatro namoradas de atletas que disputavam a partida de futebol. Segundo Matheus Vellasco, aluno da faculdade que estava presente no evento mas não presenciou as agressões, as jovens teriam negado a estudantes da faculdade que tivessem intenções racistas: o relato delas seria de que, acuadas durante um confronto entre torcidas com provocações mútuas, elas lançaram o que tinham nas mãos, uma garrafa de água e uma casca de banana aleatoriamente para se proteger, sem nem mesmo notar que havia negros por perto. Matheus reforça que reprova qualquer ato de racismo e diz que, caso os relatos de racismo sejam confirmados, a intenção dos seus colegas era sujeitar os responsáveis às devidas punições previstas pelas regras do evento. O mesmo relato veio de uma aluna da UCP, que disse que estava presente no momento da confusão e não quis ser identificada.

No domingo, a Atlética (iniciativa estudantil que se encarrega de organizar a participação de uma instituição no evento) de Direito da PUC-Rio publicou numa rede social que a próxima partida de futsal masculino, que ocorreria no mesmo dia, não teria torcida “como forma de repúdio ao ato de ter sido jogada uma banana na delegação da UCP”. Ainda segundo a publicação, o grupo estudantil que representa os alunos da instituição na competição “é contra qualquer tipo de atitude discriminatória, de qualquer tipo, a qualquer pessoa” e estava disposto a “lutar contra isso”.

  • Racismo na Unicamp Foto: Reprodução internet

    Unicamp, 2016

    A pichação “Aqui não é senzala! Tirem os pretos da Unicamp já!” surgiu em um banheiro; foi a terceira pichação do tipo em 2016

  • Coletivo denunciou casos de racismo no Facebook Foto: Reprodução Internet

    Mackenzie-SP, 2017

    Um aluno negro e seu irmão teriam sido seguidos e intimidados por seguranças. A instituição repudiou a acusação de racismo.

  • Publicações em blogs racistas chocaram estudantes Foto: Reprodução internet

    UniCarioca, 2018

    O conteúdo de um blog provocou revolta entre alunos. O autor reclamava da frequência de “negros e mestiços, que entram por cota”.

TENSÃO ENTRE TORCIDAS

No domingo, a história sobre o aluno da UCP atingido por uma casca de banana já havia corrido entre as torcidas — as maiores chegam a ter centenas de pessoas, entre estudantes e simpatizantes de cada instituição de ensino. Em reação ao episódio do dia anterior, um jogo de basquete entre Uerj e PUC acabou com um clima tenso na hora de as torcidas deixarem o estádio. Diversos membros da torcida da faculdade pública começaram a gritar em massa contra os adversários (entoando cantos como “A PUC é racista”). Um vídeo obtido pelo GLOBO mostra que a multidão não chega ao confronto físico. Mas, segundo Raíza, diversos integrantes da torcida da PUC “debocharam do nosso grito mostrando o dedo do meio e vaiando”.

Ela diz ter visto três alunos batendo no peito para imitar macacos. Uma história muito semelhante é contada por Lucas Ferreira, também estudante da Uerj. Constrangido com a postura dos jovens, que ele não conhecia, diz que foi cobrar explicações deles.

— A PUC ganhou e o pessoal começou a passar por trás de mim em direção à saída. Quando olhei para trás, vi duas pessoas imitando macacos e fazendo sons de “uh-uh-uh”. Fui até eles e começou uma confusão. Um dos meninos negou, mas depois que ele passou pela porta de segurança, ele olhou para mim e riu, dizendo “e aí, vai fazer o que agora?”. Tudo foi claramente direcionado à torcida da Uerj — conta o estudante.

Aluno da faculdade de Direito da Uerj desde 2013, Lucas relatou que já na sua época de calouro ouvia insultos sendo direcionados à instituição. A universidade foi a primeira do país a adotar o sistema de cotas raciais e, por isso, foi repetidamente chamada de “Congo” por estudantes de outras universidades na sua presença, segundo ele.

Outro aluno da mesma faculdade relatou nas redes sociais ter visto também dois homens fazendo os gestos para imitar macacos. Ele pediu para não ser identificado porque, após as denúncias na internet, recebera ameaças de agressão física.

OFENSAS MACHISTAS E RACISTAS

Os relatos de racismo no fim de semana se prolongam ainda a um terceiro jogo, desta vez de handebol feminino, que ocorreu ontem depois da partida de basquete onde as torcidas se confrontaram. Uma atleta da UFF relata ter sido chamada de “macaco” por outro membro da torcida da PUC. Pedindo que o seu nome não seja divulgado, ela conta que ficou extremamente abalada com a agressão racial, que seguiu uma série de ofensas machistas vindas de um grupo de pessoas que ela não conhecia. Ela estima que, no total, houvesse cerca de 350 pessoas assistindo ao jogo.

— Eu estava jogando bem na lateral da quadra, a um ou dois passos, no máximo, da torcida. Havia um grupo de três ou quatro garotos que me chamava de “puta”, “piranha” e “feia”, dizendo que eu não jogava bem. Infelizmente, isso acontece em vários jogos, então eu não estava me importando muito. Até porque, se você encara, eles acham ainda mais divertido. Até que uma hora eu ouvi alguém gritar “macaco não vai jogar aqui, não”. Me chamaram pelo meu sobrenome, que estava escrito na minha camiseta, e repetiram isso. Então, eles olharam para mim e disseram: “E aí, vai fazer o que?”. Mexeu muito comigo, comecei a chorar. É muito frustrante — relatou a jovem. — A arbitragem e demais pessoas que estavam na quadra tiraram estes garotos, e o jogo continuou em tranquilidade. Continuei na quadra depois de uma pausa e o suporte da minha equipe. Achei que, se eu saísse da quadra, seria como dar voz a estas pessoas. Me senti abalada, mas continuei jogando.

A estudante nunca havia sofrido este tipo de insultos e, por isso, diz que ficou especialmente abalada. Ela se diz satisfeita com as punições aplicadas, e ainda não sabe se entrará com um processo no âmbito criminal:

— Acho que as punições foram cabíveis, porque isso não aconteceu só comigo. Houve outros dois episódios antes. É importante para mostrar que os universitários de Direito não admitem este tipo de coisa. Para mim, isso mostra toda a discriminação que existe na nossa sociedade — diz, acrescentando sobre a sua indecisão a respeito de um processo criminal: — Ainda estou na dúvida porque é um caso de muita visibilidade, e não quero meu nome tão exposto. Ao mesmo tempo, acho que seja importante. É uma denúncia muito grave.

Da arquibancada, a aluna Mariana Ayodeli, da UFF, assistiu à reação da jogadora de handebol ofendida:

— Como sempre, ambas as torcidas estavam exaltadas, chamando as jogadoras, fazendo provocações e dizendo que elas não jogavam bem. Houve um momento em que a expressão corporal dela mudou durante as provocações. Ela aparentemente começou a chorar. Mas, antes de sair de quadra, relatou o que tinha acontecido a outra jogadora do time, que, por sua vez, questionou a torcida e relatou à mesa de delegados e árbitros que haviam chamado a primeira jogadora de “macaca”.

Em um vídeo divulgado na internet, o time da UFF grita “racistas não passarão” em protesto contra a torcida da universidade católica.

A comoção pelo caso foi generalizada entre as jogadoras que estavam na equipe de handebol da UFF. Foi o que relatou Larissa Guimarães, que estava na quadra e também é negra. Após ter amparado a amiga, que estava às lágrimas, agora seu desejo é ver iniciativas para acabar com o racismo em jogos universitários.

— Como jogadora negra, tentei abraçá-la e protegê-la. O emocional falou mais alto. A jogadora afetada estava muito envergonhada. Hoje, o meu pensamento é de tentar criar uma única ação para nos manifestarmos contra tudo isso. Eu só pensava: “Por que não aconteceu comigo?”. Eu estava ali pelo amor ao esporte, e de repente me vi chorando na quadra, um lugar que normalmente é muito confortável para mim. E esta é só uma ponta de iceberg. Falta empatia para compreender que isso deve ser muito repreendido, independentemente de você ser branco, negro, homem ou mulher. É necessário que agora haja união entre torcidas, atletas e estudantes para mudarmos isso. Não é uma questão de uma só faculdade, mas universal e muito frequente nas faculdades de Direito, o que me soa como uma ironia.

Outro estudante da UFF, que também é membro da Atlética de Direito da instituição, contou que a presidente do grupo de atletas está redigindo uma nota sobre o caso.

MULTA E EXPULSÃO DE COMPETIÇÕES

A Liga Jurídica Estadual (composta por representações de todas as faculdades participantes para a organização do evento) determinou diversas punições à delegação da PUC. No primeiro momento, com multa de R$ 500 e suspensão da torcida em um jogo. Mas, com a reincidência, o título de campeão geral foi retirado da PUC e a delegação da universidade foi suspensa por um ano, ficando afastada dos Jogos Jurídicos Estaduais de 2019.

Além disso, a delegação da PUC deverá emitir uma nota de retratação e ajudar na identificação dos responsáveis para que o caso eventualmente seja levado a âmbito criminal, segundo um membro da Liga Jurídica. O dinheiro pago como multa deverá ser destinado ao movimento Jogos Sem Racismo, campanha que combate o preconceito neste evento universitário anual.

“A PUC-Rio, que havia terminado a competição com o maior número de pontos da competição pela primeira vez, foi punida com a perda de 12 pontos, sem, contudo, retirar os resultados esportivos das equipes e das modalidades individuais, em respeito aos atletas. Excetuando-se as competições em que os seus atletas já estão inscritos, a PUC-Rio não poderá participar de quaisquer competições ao longo de 2018; e a PUC-Rio não participará dos Jogos Jurídicos Estaduais do Rio de Janeiro em 2019”, diz uma nota oficial da Liga Jurídica. “A Liga e o movimento Jogos Sem Racismo decidiram também que, diante dos atos praticados, a edição de 2018, não consagrará nenhuma faculdade participante como campeã geral, mantendo-se apenas os resultados das modalidades em respeito aos atletas participantes. A Atlética da PUC-Rio se comprometeu a colaborar com a identificação dos agressores e prestar auxílio jurídico às vítimas dos crimes cometidos”.

O GLOBO tentou fazer contato com a representação esportiva estudantil da PUC, mas não obteve retorno. Já a Atlética de Direito da Uerj declarou repudiar totalmente os fatos ocorridos, dizendo que estava ainda apurando mais informações para, fora do âmbito criminal, analisar a punição a ser aplicada aos responsáveis. O DCE da PUC informou que está “apurando o ocorrido, buscando relatos de quem estava no evento”, antes de se manifestar publicamente.

Em comunicado, o professor Ricardo Lodi Ribeiro, diretor da Faculdade de Direito da Uerj, se solidarizou com as vítimas, destacando que no “Estado Democrático de Direito não são mais admissíveis atos como estes, em especial vindo de estudantes de Direito, o que exige, considerando ser a prática criminosa, que sejam amplamente investigados e, assegurado o contraditório e a ampla defesa, sejam os culpados exemplarmente punidos para que tais condutas abomináveis não voltem a acontecer no ambiente universitário”.

Em nota, a Vice-Reitoria para Assuntos Comunitários e o Departamento de Direito da PUC-Rio informam a criação de uma comissão disciplinar para “averiguar informações e, caso confirmada a veracidade, a apuração e individualização das responsabilidades de membros do corpo discente”.

A comissão, formada pelos professores Breno Melaragno, Job Gomes e Thula Pires, terá prazo de 15 dias para elaboração de relatório.

“Acreditamos que o racismo, violência que ainda corrói a sociedade brasileira, deve ser enfrentado por medidas repressivas e inclusivas”, diz a nota. “Não tergiversamos em combater qualquer forma de manifestação de racismo por meio de punições disciplinares e preservaremos o esforço de contínua melhoria das políticas de promoção da diversidade e da igualdade racial em nossa Universidade”.

Não há registro sobre os casos na 105ª DP (Petrópolis), mas a Polícia Civil vai apurar os fatos a partir das publicações nas redes sociais. “As investigações estão em andamento na 105 DP (Petrópolis) para apurar os fatos. Os agentes realizam diligências em busca de informações”, diz a nota da corporação.

PRECONCEITO NÃO É NOVIDADE NAS ARQUIBANCADAS

Os Jogos Jurídicos Estaduais no Rio de Janeiro acontecem anualmente. Nesta edição, foram quatro dias consecutivos de competições esportivas durante o dia e festas madrugada adentro, de quinta-feira a sábado. Os relatos de torcidas que entoam cantos preconceituosos são antigos — frequentemente com músicas nada politicamente corretas para se autovalorizar e denegrir os adversários —, e os alunos da Uerj se queixam de expressões racistas da delegação da PUC, pelo menos, desde o ano passado.

Raíza é uma das fundadoras dacampanha Jogos Sem Racismo, criada há um ano para extinguir esta forma de preconceito das quadras e campos. Segundo ela, também aconteceram casos de homofobia neste ano, mas os mais graves foram os de racismo. Larissa, por sua vez, relata que presenciou cantos terem sido entoados por grupos dentro da torcida da PUC em que os alunos se vangloriavam da sua condição social mais alta frente a alunos de universidades públicas.

Não é raro que alguns alunos de faculdades particulares nas torcidas refiram-se a si mesmos como “patrões” nestas competições, fazendo referências explícitas às rendas mais altas das sua famílias. Em uma das músicas, por exemplo, uma parte de uma torcida da PUC cantou na edição deste ano, em provocação às arquibancadas da UFF, que “gastavam todo o salário” dos adversários em um tipo de droga ilícita, segundo Larissa.

O clima de acirrada competição, o alto consumo de bebidas alcoólicas e as poucas horas de sono ajudam a colocar os ânimos à flor da pele durante estes eventos universitários, criando por vezes um ambiente fértil aos insultos entre torcidas. Segundo o “Diário de Petrópolis”, a festa de abertura dos Jogos Jurídicos, na noite de quinta-feira, incomodou moradores do entorno devido ao “som tão alto que fez vibrar janelas de residências” e ao trânsito caótico.

Os alunos explicam que as instituições e o corpo docente não se envolvem em nenhuma fase da organização dos Jogos Jurídicos. Todas as providências são de responsabilidade das Atléticas de cada universidade, que, juntas, formam a Liga Jurídica, no caso do evento envolvendo as faculdades de Direito.

Segundo Matheus, que até o ano passado era presidente da Atlética de Direito da PUC-Rio, os alunos que organizam esses eventos em várias faculdades vêm se engajando em campanhas para eliminar gritos de torcida com traços de preconceito.

— Já na minha gestão havia uma iniciativa para excluir músicas ou gestos que pudessem remeter a atos racistas, homofóbicos e machistas. Antigamente, isso existia em várias faculdades, que há um tempo vêm entrando neste mesmo movimento. O Estatuto da competição prevê punições para determinados atos como esses, e os responsáveis poderiam ser banidos dos jogos e dos eventos sociais da faculdade. Não é, de fato, o perfil que a gente procura nem quer para as torcidas.

Fonte: O Globo
Créditos: O Globo