Distopia

Boechat: enquanto uma heroína tenta salvar pessoas, outros filmam tragédia - Nina Lemos

No meio das imagens terríveis do acidente que matou ontem o jornalista Ricardo Boechat e o piloto Ronaldo Quattrucci, uma delas chamou a atenção.

No meio das imagens terríveis do acidente que matou ontem o jornalista Ricardo Boechat e o piloto Ronaldo Quattrucci, uma delas chamou a atenção. Segundos após o acidente, uma mulher tentou, sozinha, salvar as vítimas. Com um capacete na mão e muita coragem, ela tentou abrir a porta do caminhão que colidiu com o helicóptero. Ao seu lado, vários homens filmaram a cena. Sim, ficaram parados, só filmando. Sabemos disso por meio de outras fotos e videos de pessoas que fizeram a mesma coisa. Em um dos vídeos, ela grita: “gente, ajuda!”.

Leilane Rafael Silva foi uma heroína. Ela arriscou a própria vida para salvar os outros. Um exemplo fantástico. Já muitos dos outros… bem, eles caíram em um fenômeno cada dia mais normal: filmaram ao invés de ajudar. Um horror. Com nossos celulares, munidos de câmeras potentes, ao dar de cara com uma tragédia, muitos de nós preferem … filmar! Sim, uma parcela perversa do ser humano acha mais importante ter a imagem do sofrimento humano do que ajudar a minimizar esse sofrimento. Para que tentar salvar uma vida, se ninguém vai ver? Afinal, quando ninguém filma, é como se não tivesse acontecido.

O fenômeno não é privilégio do Brasil, ele é mundial e estudado mundo afora. Na Alemanha, depois do caso em que um ciclista preferiu filmar um homem atropelado (que depois morreu) a socorrê-lo veio a tona, o ato passou a ser crime. Se você filma em vez de ajudar, pode ser preso. Nos Estados Unidos e na Austrália, pessoas também já foram presas pela mesma razão.

Em 2015, por exemplo, um homem foi preso em Ohio, nos Estados Unidos, depois de postar no Facebook o resgate de um menino de 17 anos que havia sofrido um acidente de carro (e posteriormente morrido). A polícia o encontrou justamente por causa do vídeo. Não existe outra palavra mais apropriada nesse caso que não seja…. que idiota!

Prender quem faz esse tipo de coisa me parece justo. É totalmente absurdo que precise existir lei para uma coisa tão básica e que as pessoas sejam obrigadas a ter bom senso… mas se isso não é natural, que seja forçado. Agora que todos somos cinegrafistas, repórteres, fotógrafos e atores, muitos de nós preferem filmar e postar uma tragédia. Quando fazemos isso queremos todos documentar a história? Não acho. Sinceramente, penso que somos mais medíocres que isso e queremos simplesmente validar nossa existência.

Antes, para existir, a gente precisava aparecer na televisão. Hoje, precisamos de likes em mídias sociais. Se tenho likes, as coisas estão dando certo. As vítimas de acidentes, como todos sabem, têm família. E não, seus sofrimentos não devem ser expostos em detalhes. Ok, essa era uma discussão que ficava dentro das redações e das escolas de jornalismo. Publicar ou não a foto de um famoso morto, de acidentados? Agora, que todos podem ser os comunicadores (o que, por um lado, é ótimo) perdeu-se o controle. Parece que a ação imediata de muitos é: vi uma coisa que pode ser notícia, vou sacar meu celular e postar, doa a quem doer.

Sim, sacar o celular pode ser uma boa idéia, para, por exemplo, ligar para os bombeiros, certo? Não para fazer um filme e POSTAR. Isso não vai mudar em nada a sua vida (e muito menos daquela pessoa acidentada, que, escuta, pode ter a vida salva!). Talvez você ganhe mais likes, mostre para os vizinhos e eles falem: “nossa, que impressionante.”

Impossível não lembrar de uma música que foi escrita há mais de 30 anos atrás: “Metrópoles”, da Legião Urbana. Em 86, Renato Russo cantava: “É sangue mesmo, não é metiolate, todos querem ver e comentar a novidade. Tão emocionante, um acidente de verdade. Estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre. Vai passar na televisão”. A televisão foi substituída pelos celulares. Mas muitos de nós continuam achando “emocionante um acidente de verdade”. Sim, o ser humano pode ser muito bizarro. E deixar muito a desejar.

Fonte: UOL
Créditos: Nina Lemos